As marcas nos braços e nas costas guardam a lembrança daquela noite de fevereiro onde a vida de Ingra Ohana mudou completamente. A contadora de 31 anos, natural do Oeste de Santa Catarina, foi esfaqueada pelo ex-marido com mais de 20 golpes na frente da filha do casal. Mas essa não foi a primeira vez em que ela foi vítima de violência doméstica por parte do homem. Xingamentos e perseguições também trouxeram consequências que vão muito além da parte física.
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A cerca de 500 quilômetros dali, uma história semelhante se mistura à da contadora. Janaína*, de 23 anos, viveu por anos episódios de violência psicológica por parte do pai, que também agredia a mãe dela.
— Quando eu tinha 17 anos aconteceu um episódio. Eu acordei com ele [pai] querendo conversar e, quando eu neguei, ele começou a se alterar. Começou a gritar, apontar na minha cara. Depois, ele voltava e era a pessoa mais amorosa do mundo. Ele ia me abraçar, me beijava, fechava a porta, abria de novo e começava a gritar de novo, ia intercalando — relata.
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Os dois casos se misturam à realidade de milhares de catarinenses. Só em 2022, 89.568 denúncias de violência doméstica foram registradas no Estado, o maior número dos últimos três anos, conforme dados no qual o Diário Catarinense teve acesso por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). É como se, a cada hora, 10 mulheres fossem espancadas, ameaçadas, estupradas ou perseguidas nos 295 municípios catarinenses.
O retrato da violência doméstica em SC
Os números de casos de violência doméstica tiveram aumento nos últimos anos. Em 2022, 89.568 denúncias foram registradas em Santa Catarina, segundo dados da Polícia Civil – aumento de 7,97% em relação a 2021 (82.952) e de 22,15%em comparação com 2020 (73.322).
As denúncias concentram boletins de ocorrência de crimes como lesão corporal, ameaça, estupro, sequestro e perseguição. Além disso, só nos dois primeiros meses de 2023, 11.810 boletins de ocorrência foram registrados neste ano em Santa Catarina, conforme a Polícia Civil.
— Pelos números nós observamos que as épocas com o maior número de casos são dezembro e janeiro, por conta do fim de ano, e em outubro, quando ocorrem as tradicionais festas pelo Estado. Isto porque o consumo de álcool pode estar relacionado ao aumento das agressões — explica a coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami), Patrícia Zimmermman.
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As regiões que concentram o maior número de casos são Oeste, Grande Florianópolis e Norte de Santa Catarina. Em números absolutos, em 2022, a Capital lidera a lista com 4.615 registros, seguida por Joinville (3.896), e Chapecó (3.122). Agora, ao comparar de acordo com a taxa de habitantes, Entre Rios, no Oeste, lidera o índice: o município de pouco mais de 3 mil habitantes registrou 61 denúncias de violência doméstica no último ano, uma taxa de 18,36 a cada mil moradores.
— Temos dito que [esses números] são uma mudança de comportamento de muitas mulheres. A mulher, por muitos anos, sofreu calada situações de violência doméstica e familiar e ela vem se apropriando dos seus direitos, dizendo não para toda e qualquer forma de violência. Então essas violências, que eram subnotificadas, passaram a ser noticiadas e passaram a ser investigadas — complementa Patrícia.
A idade é semelhante às vítimas de feminicídio – mulheres que foram assassinadas por conta da condição de gênero. Segundo os dados no qual o DC teve acesso, das 168 mulheres assassinadas entre 2020 e 2022, 74,4% tinham entre 20 e 49 anos.
Os crimes, em sua maioria, ocorrem pela manhã (35,11%) e no domingo ou segunda-feira (17,85%).
— O dia da semana é bem relevante. Pode ser que a briga tenha começado no sábado e tenha finalizado no domingo. Na segunda a mesma coisa. São crimes que muitas vezes ocorreram no domingo à noite, mas só foram registrados no dia seguinte. Dias de jogos de futebol a incidência também aumenta. Quanto a idade, é a média nacional. É quando as mulheres têm filhos pequenos e maior dependência econômica — explica a advogada Tammy Fortunato.
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Santa Catarina terminou 2022 com 56 casos de feminicídios, um a mais do que em 2021. Neste ano, até 3 de março, foram nove casos – queda de 25% em relação ao mesmo período no ano passado, quando foram 12. Entre as vítimas está Iraides Capeletti, de 41 anos, morta na frente da própria filha em 18 de fevereiro, em Guaramirim, no Norte do Estado.
Conforme a delegada Patrícia, o fato de as mulheres mais jovens serem maioria das vítimas também está ligado à subnotificação. Isto porque há maior resistência de pessoas mais velhas em denunciarem os casos.
— A mulher por anos foi educada para ser uma boa dona de casa, uma boa esposa, uma boa mãe. Quanto mais velha, ela ainda tem muito forte esse sentimento de tentar mudar esse homem, e vemos isso muito forte nas estatísticas, como a baixa notificação das pessoas idosas nos casos de violência doméstica familiar, mas um número muito próximo de mulheres idosas que são vítimas de feminicídio. Elas não notificam os casos de violência doméstica e familiar e, por isso, a gente precisa de uma conscientização ainda maior da mulher idosa, do que é seus direitos e o que ela precisa fazer para denunciar os casos de violência — diz.
O aumento dos casos de violência doméstica não é algo restrito a Santa Catarina. De acordo com a quarta pesquisa “Visível e Invisível – a Vitimização de Mulheres no Brasil”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha, em 2022, 28,9% das mulheres relataram ter sido vítima de algum tipo de violência ou agressão, o maior percentual da série histórica. Ou seja, a cada minuto, 35 mulheres foram agredidas física ou verbalmente no país.
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A vida de quem sobreviveu a violência
Os olhos de Ingra Ohara denunciam a tristeza que é relembrar o dia em que a sua vida mudou completamente. No corpo, a tatuagem cobre as cicatrizes. Na mente, as imagens de um dia que ficou marcado para sempre. A contadora estava casada há 10 anos com o acusado quando sofreu a primeira agressão física, em 2019.
— Eu cheguei em casa do trabalho e ele começou a falar comigo, e eu vi que ele fechou todas as janelas e toda a casa. Depois, ele começou a falar coisas que eu não sairia dali se não fosse da vontade dele e veio para cima. Foi meia-hora sendo agredida — explica.
Ela só conseguiu fugir após um carro estacionar na frente da casa dela e, com isso, o homem parou com as agressões. Depois disso, ela recebeu atendimento e entrou com a medida protetiva contra ele, que foi quebrada 24 dias depois. Na época, o suspeito chegou a ser detido, mas foi liberado em seguida.
— Foi aquela correria durante 2019 inteiro, fugindo, não saindo de casa, não podendo estar exposta. Eu era a pessoa que tinha que ficar escondida, não conseguia sair de dentro do meu apartamento. Ficou aquela prisão consciente — explica.
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Por terem filhos, algumas medidas de aproximação foram liberadas. Porém, Ingra conta que os contatos ultrapassavam aqueles estabelecidos pelo juiz.
— Algumas brechas foram liberadas, como, por exemplo, você pode entrar em contato com ela para falar sobre os seus filhos. Só que durante essas brechas não era só isso. Passou a perseguir, ligar quando ele estava com as crianças, enfim, foi uma loucura esse um ano — explica.
O estopim foi em fevereiro de 2021. Ainda com a medida protetiva, que impedia que o homem se aproximasse dela e saísse de casa durante a noite, o ex-marido de Ingra a esfaqueou enquanto ela saia de um restaurante com uma amiga e a filha de seis anos.
— Ele não podia sair das 9 da noite até às 6 da manhã de dentro de casa. Então, quando a minha filha falou “papai”, eu já sabia que era eu — relembra.
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A contadora foi ferida por mais de 20 golpes de faca, o que lhe causou ferimentos nos braços, tórax e outros órgãos. A filha presenciou tudo. O homem foi preso em flagrante, e segue detido até hoje.
— Ela [minha filha] é a maior atingida. Por mais que talvez não pudesse mais estar aqui,ela pra mim foi a que mais sofreu. Eu não queria ter permitido que ela visse o que viu. Não por ele, não por mim, mas pelo futuro dela — lamenta.
Ingra ficou 28 dias internada no hospital, sendo 10 na UTI. Ao todo, passou por três cirurgias. Enquanto ainda se recuperava dos ferimentos, começou a receber mensagens de diversas mulheres que, assim como ela, tinham passado por episódios semelhantes. Foi nesse momento, então, que surgiu a ideia de criar uma instituição que pudesse auxiliar essas pessoas. Atualmente, o “Somos Todas Ingra” presta assistência jurídica e financeira às vítimas de violência doméstica de todo Estado.
— Quando acordei a única certeza que eu tinha foi que eu iria montar uma associação de defesa das mulheres. Mas eu jamais imaginava o movimento que estava tendo do lado de fora. As mulheres da minha cidade, da região, protestando, levantando bandeiras, cartazes na cidade. E elas mesmo hoje são membros da associação, que leva esse nome: “Somos todas Ingras. Mas não é só a Ingra. É a Ana Maria, a Joana, todas nós, também aquelas que não tiveram voz para falar e que hoje nem podem mais — complementa.
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Da violência psicológica à agressão: o que diz a lei?
Sancionada em 7 de agosto de 206, a Lei 11.340 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da forma em que ela acontece. O nome da lei, Maria da Penha, é em homenagem a uma mulher de mesmo nome, em que o marido tentou matá-la por duas vezes.
“Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”, diz o texto.
A lei considera cinco tipos de violência doméstica: física, patrimonial, moral, sexual e psicológica. Um ciclo que demonstra como a prática se instala dentro dos relacionamentos.
— Começa com aquela coisa de que “é ciúme, ele não quer que eu use uma roupa decotada porque tem ciúmes” e a mulher se engana com isso por causa de um fator chamado ansiedade social, que diz que a mulher tem que ter um homem. Então, para se proteger disso, ela arranja uma pessoa que , às vezes, não é boa. Mas ela se engana acreditando que ficando com ela, ele vai melhorar. Acredita que se ele tem esse ciúme, ele me ama demais. Ela justifica para ter [o companheiro] e isso é triste demais — explica a ex-titular da delegacia da mulher de Joinville e vice-governadora de Santa Catarina, Marilisa Boehn.
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Ingra Ohana, por exemplo, pontua que durante o relacionamento viveu os diferentes tipos de violência, mas que o estopim foi quando foi agredida pelo ex-companheiro em 2019.
— Sempre o que perguntam é, teve sinais antes? Na verdade, não tem sinais, tem pontos que acontecem. Por exemplo, ligações via vídeo uma atrás da outra. Ficou nervoso, quebrou um copo. Ficou nervoso, fugiu com as minhas coisas. Quando eu comecei o meu relacionamento, eu tinha 18 anos. Quando eu me separei, em 2019, já tinham se passado 10 anos. Então, no decorrer de tudo isso, e por ter filhos e crianças envolvidas, acaba esperando que as coisas melhorem e não querendo acreditar naquilo que está acontecendo — diz.
Já Janaína* via dentro de casa uma ação que acabou perpetuando em outros relacionamentos. Após anos vendo a mãe passar por esses tipos de violência, ela acabou pensando que aquilo era normal.
— Ele [o pai] dizia: violência é algo normal. Traição era algo normal, que eu, como mulher, deveria sempre ser inferior por questões biológicas. E eu realmente acreditava, porque foi nessa pressão que eu cresci — relata.
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Isto, inclusive, trouxe traumas para toda a vida dela. Ainda na adolescência, por exemplo, ela conta que chegou a perceber que estava dentro de um relacionamento abusivo, em um cenário muito parecido com aquele que conviveu dentro de casa.
— No olho do furacão com o meu pai, eu tinha um relacionamento que também era agressivo e tinha esses problemas, como se fosse uma repetição. Mas para mim era normal — relembra.
Por conta disso, a advogada Tammy Fortunato aponta a importância da educação para o combate dos casos, principalmente para quebrar o ciclo de violência.
— É preciso investir na educação básica e campanhas de combate à violência, inclusive campanhas voltadas aos homens — salienta.
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As ferramentas para o combate da violência doméstica
A lei também cria medidas para proteção das vítimas, como a criação de delegacias especializadas para atendimento de casos, campanhas educativas para a prevenção, além do direito a ferramentas que possam proteger a integridade física das vítimas, como a medida protetiva.
Conforme dados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), só em janeiro deste ano, 2.327 medidas protetivas foram concedidas – aumento de 104,84% em relação ao mesmo período em 2022, quando foram 1.136 documentos. Ao comparar com o mês anterior, também houve crescimento de 41,97% – em dezembro, 1.639 medidas foram emitidas.
Segundo a presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica da Ordem dos Advogados Brasil (OAB/SC), Denise Marcon, o motivo para o crescimento nos pedidos está relacionado ao aumento das denúncias.
— Antes, ninguém ficava sabendo. Hoje não, a mulher tem espaço de fala. São séculos de patriarcado, onde o homem era o senhor poderoso, que podia tudo, e a mulher tinha que ficar quieta em casa e não podia nem pensar em não querer mais aquele homem. Mas hoje as coisas mudaram. Eu entendo que esse aumento de dados, não é que aumentou. Acho que realmente é a possibilidade de que as mulheres estão tendo como buscar ajuda — diz.
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Além disso, a coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami), Patrícia Zimmermman, salienta que as medidas são eficazes, mas é importante que a mulher denuncie em caso de descumprimento.
— O Estado vem desenvolvendo formas de manter um controle da eficácia dessa medida. Então é importante que a mulher, quando recebe uma medida protetiva de urgência, comunique os descumprimentos. Por exemplo, hoje existe o botão do pânico, da Polícia Militar, onde ela aciona o botão em caso de descumprimento, que vai ser investigado — explica.
O governo de Santa Catarina também vem trabalhando com algumas medidas para tentar frear os números de violência. Segundo a vice-governadora Marilisa Boehm, que fundou a primeira delegacia da mulher de Joinville, o Estado trabalha na ampliação de Salas Lilás para o atendimento de vítimas, além de grupos de recuperação de homens, como forma de educar e conscientizar a sociedade sobre os traumas da violência doméstica.
— Nós precisamos identificar qual o problema atual. Na década de 1990, era a bebida unida com o desemprego, a falta de informação e muita ignorância. Isso era naquela época, mas o que que está acontecendo agora? Nós estamos inventando essa transição cultural, então nós precisamos reunir essas pessoas e fazer com que elas entendam que o mundo mudou, que as mulheres têm o seu espaço dentro da sociedade, que eles olhem para a mulher como a mãe deles, como uma filha dele — explica.
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Por fim, todos os especialistas pontuam um fator principal, que ajuda a chegar nessas mulheres: a denúncia.
— Quando a gente fala de um ciclo de violência, no início a mulher tende a duvidar: “isso realmente é um sinal de violência?”, “isso realmente está acontecendo comigo?”. Ela começa a se questionar, quase como se invertesse o papel entre o autor de violência e a vítima. A mulher tem que ter em mente que, como vítima, ela não é a causa, quem pratica a violência é o responsável. E ela, como vítima, tem que procurar ajuda — finaliza a delegada Patrícia Zimmermann.
Como denunciar:
- Disque-denúncia: 181
- Polícia Civil: 197
- Polícia Militar: 190
- Por meio do whatsapp da Polícia Civil: 48 98844-0011
- Também é possível fazer um boletim de ocorrência por meio da Polícia Virtual da Mulher
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