Antes de qualquer outra coisa preciso comentar um episódio de Mad Men. Espero que quem não conheça o seriado me entenda – e comece a assisti-lo hoje à noite.

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No final de semana ensolarado a professora dança descalça na grama em um evento do colégio. O protagonista Donald Draper, publicitário em uma frenética agência nova-iorquina, está em uma cadeira desejando tanto a professora como o universo lúdico que ela representa. Para transmitir esses dois desejos ao espectador, um close mostra a mão de Draper acariciando o mesmo gramado em que a professora está dançando.

Essa cena exemplifica o quanto uma narrativa pode ser sofisticada e acessível ao mesmo tempo. Podemos absorver mais ou menos o detalhe da mão na grama, mas ele dá qualidade literária a Mad Men sem atrapalhar o entendimento da história. Agora pensem nos livros ou seriados de trama orgulhosamente difícil e experimental que nunca se igualam nessa qualidade.

Claro que experimentos são necessários. A literatura, por exemplo, teve várias técnicas revolucionárias no começo do século 20. A história mundial da época se parecia com o Satan Goss em Jaspion, com todo seu poder de enfurecer os seres e transformá-los em monstros incontroláveis. Se o mundo já não era o mesmo, por que a literatura tinha que continuar sendo? Os escritores que melhor perceberam isso chegaram às várias revoluções individuais que foram etiquetadas, em conjunto, como modernismo.

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Fica bastante difícil imaginar a literatura sem o modernismo. Se ainda não leram, leiam este romance incrível de Henry James, Pelos Olhos de Maisie, que ganhou uma edição bonitona da Penguin Companhia em 2010. O livro foi publicado pela primeira vez em 1897.

Mencionei o começo do século 20 por simplificação conceitual: é claro que muitos escritores se engraçaram antes com técnicas que marcariam o modernismo.

Pelos Olhos de Maisie é viciante pela ironia, mas mais ainda porque os avanços técnicos estão a serviço da história, não do “questionamento da própria linguagem” e todo esse discurso sadomasoquista posterior. Depois do divórcio dos Farange, a briga deles pela filha Maisie na Justiça teve um resultado “digno do julgamento de Salomão: ela foi dividida em duas e as porções foram atiradas imparcialmente para os disputantes”. A partir daí, vemos os pais divorciados e os padrastos pelos olhos de Maisie. Só pelos olhos dela, quero dizer. O retrato dos adultos é propositalmente incompleto, preenchido só pelo que percebe a criança. Isso permite que Henry James enfatize a mesquinhez dos pais divorciados que usam os filhos para se ferir. Uma narrativa tradicional, sem elipses, não teria o mesmo resultado.

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A herança maldita é que todo escritor sem muito o que dizer encontra ainda hoje no “estou ampliando possibilidades técnicas” uma desculpa. Os pós-modernos mantiveram o mesmo papinho. Seria lindo, não fosse o fato de que os escritores com mais pirotecnias narrativas tendem a ser justamente os de menor conhecimento real das coisas e menos interesse pelos outros. São os que mais usam protagonistas escritores e mais cismam com temas estéreis. Os menos capazes de fazer algo com o apelo e a qualidade de Mad Men, que ganhou todos os prêmios possíveis. Alice Munro e Jonathan Franzen, dois escritores com o mesmo realismo sofisticado do seriado, além de premiados (ela acaba de ganhar o Nobel; ele já levou o National Book Award americano), são best-sellers. Os experimentalistas ficam à margem resmungando. Às vezes o público sabe o que prestigiar.