A coluna deste fim de semana vai contar um conto – que bem se assemelha a histórias verdadeiras – relacionado às vivências corporativas. São situações bem mais comuns do que se imagina. Claro que a cumplicidade entre executivos, às vezes, esbarra na prática individualista tão conhecida. Afinal, a briga por espaços de mando só cresce, principalmente em tempos difíceis. Em especial porque cada vez há menos vagas a serem ocupadas. A razão é simples: as companhias enxugam quadros e os sobreviventes acumulam vários postos. Nenhuma surpresa. É assim a natureza do cotidiano de dirigentes: desafiadora. Tanto para quem chega quanto para quem vai embora. Mas vamos ao conto.

Continua depois da publicidade

Ao se despedir da empresa, o diretor André (nome fictício), executivo experiente, 21 anos em posições de destaque no mundo corporativo, 52 anos de idade, entregou três envelopes numerados ao seu sucessor, Márcio (também nome fictício), um jovem, 32 anos, com sólida formação acadêmica no exterior, arrojado e com muita gana para acertar. A transição do poder foi civilizada e cheia de cortesia. André cumpriu jornada de sete anos na companhia. Um terço de sua vida profissional. Era um dos mais respeitados de poderoso grupo empresarial, com negócios em múltiplas áreas e unidades e escritórios espalhados por três continentes. Antes de ir embora, avisou ao substituto recém-chegado para abrir os envelopes e ler os conteúdos à medida em que as dificuldades surgissem.

Num primeiro momento, o novo gestor ficou intrigado. Na sequência, relaxou. E foi à luta. O trabalho seguia com naturalidade. Os pares e subordinados admiravam-lhe a coragem de imprimir um tom pessoal ao trabalho. Dez meses depois, viu-se às voltas com situações originadas de seu modelo gerencial, adotado desde o primeiro dia. Suas práticas – rigor excessivo, pressão extrema por resultados imediatos, muito discurso e pouca decisão – dividiram opiniões. Conversas de corredores já eram frequentes. O grupo começava a olhar desconfiado. Rapidamente, então, passou a disseminar boataria quase explícita. O executivo, com sede de sucesso, ia, progressivamente, perdendo a liderança da equipe.

Em busca de solução para amenizar os conflitos, lembrou-se do aviso de seu antecessor. Curioso, abriu o primeiro envelope, guardado na parte inferior da gaveta cinza, sempre cuidadosamente trancada. Leu: “A primeira confusão já apareceu? Pois é assim a vida executiva, meu caro. Sossega. Coloque a culpa nos métodos confusos e antiquados de quem estava no cargo antes de ti: eu”.

Márcio riu com a esperteza. Feliz com a perspectiva de dar uma boa resposta ao presidente, pediu meia hora do tempo do CEO. Reunião marcada, foi direto ao ponto. “O senhor sabe, o cidadão que estava aqui nesta cadeira era muito desatento aos detalhes dos negócios. Identifiquei que as dificuldades atuais já vinham de há muito tempo e nunca foram eficazmente combatidas”. Relacionou aspectos negativos encontrados. Lançou aquela frase infalível, tão ao gosto de políticos: “Recebi uma herança maldita”. Explicou que era fundamental tomar providências enérgicas para recolocar a companhia no rumo. Convenceu o líder maior. Ganhou um tapinha nas costas, que interpretou como um sinal de estímulo. E seguiu sua trajetória, mais confiante.

Continua depois da publicidade

Como nada é muito previsível na atividade empresarial, o tempo foi passando até que, 11 meses depois, o mar revolto dos mercados agigantou-se novamente. Clientes antigos romperam acordos. Outros pediram renegociação de contratos. Licitações importantes foram perdidas. Os custos cresceram demais. Funcionários de qualidade bandearam-se para a concorrência. A empresa diminuía seu market share. Perplexo com os fatos, que resultavam em números ruins, precisando se aconselhar com um oráculo, e sem saber a quem recorrer, Márcio lembrou-se da conversa com o ex-diretor. Sem pestanejar, abriu o segundo envelope. Lá estava: “A crise retornou mais forte? Agora chegou a vez de agir. Corte custos drasticamente. Dê férias coletivas, reduza os estoques. Enxugue estruturas. Demita, se não enxergar outro jeito”.

Animado com a aparente sensatez, levou a ideia ao CEO global. Aprovada. Trocou fornecedores. Pilotou alterações nos escalões intermediários. Apertou o cinto. Logo os funcionários notaram os efeitos. Caiu a qualidade dos insumos comprados. O cafezinho foi racionado. A utilização dos carros da empresa passou a ser controlada com mão de ferro. Publicidade passou a ser despesa, não mais investimento estratégico. Uniu departamentos, demitiu funcionários com tempo suficiente para se aposentar. Vagas foram fechadas. O susto generalizado foi aplacado com habilidade. Mandou avisar, via e-mail e em murais, para que todos, absolutamente todos, se engajassem na missão de reconquistar fatias do mercado. As mensagens foram compreendidas. As mudanças de atitude, somadas a estratégias diferenciadas, deram fôlego e a companhia andou para frente por algum tempo, sem sobressaltos maiores.

Quando a calmaria estava instalada, veio, de fora, mais um tiro a derrubar a competitividade. O ministro da Fazenda acabava de anunciar o fim dos subsídios para o setor que, antes, ajudavam a mascarar o resultado final do negócio. Também elevou impostos. Consumidores se retraíram. Márcio se preocupou. Tinha motivos. Os seus liderados já não eram tão ativos. O estresse dominava a todos. Aumentavam as doenças profissionais. A produtividade caiu drasticamente.

O executivo foi pedir auxílio ao RH. Ouviu sugestões com foco em motivação e treinamento. Adotou parte das propostas apresentadas. Disse, ao comando geral, que um consultor renomado daria jeito. A empresa acolheu a fala. Pagou quase R$ 50 mil por uma palestra para os 600 e poucos empregados, no galpão improvisado com cadeiras de plástico brancas. Promoveu um cursinho in company, de oito horas, com o craque sênior, para o conjunto das 11 lideranças. Mas não foi suficiente. Os problemas só cresciam.

Continua depois da publicidade

Procurou, então, a área de marketing, com gente jovem e preparada, a iluminar cabeças com ideias criativas. O problema é que o problema não era o pessoal do marketing e suas ideias criativas. Era o esgotamento da sua condição de líder. Isso ninguém tinha a coragem de lhe dizer claramente. Mas os números do balancete mensal mais recente insistiam em denunciar.

Márcio, sem saber mais o que fazer, transformou-se. O diretor educado e decidido a perseguir os melhores desempenhos em todas as áreas passou a demonstrar aquele cansaço de um guerreiro em meio a uma batalha sem fim. Nesta hora, foi chamado pelo CEO a explicar por que não conseguia atingir metas de faturamento e lucratividade exigidas para rentabilizar a empresa. Balbuciou qualquer coisa sem convicção. Seus próprios ganhos, parcialmente atrelados ao desempenho, igualmente o decepcionavam.

Em setembro, ao final do terceiro trimestre, os números estavam muito abaixo do que previa o planejamento feito em novembro do ano anterior. Márcio tinha que pensar rápido. Ter ideias fantásticas para tingir de azul a última linha do balanço. E muita lábia para sair do beco escuro em que se metera. Enfrentar o conselho de administração e os acionistas raivosos não é para qualquer um.

Inquieto, e sem ter respostas claras para dar a seus interlocutores na tensa assembleia extraordinária convocada emergencialmente, buscava achar nova cartada. Quanto mais a reunião demorava, mais era apedrejado. E mais suava frio. Pediu à secretária: “Um café com leite, por favor”. Ela sorriu sem jeito: “Doutor, não temos café. O senhor decretou racionamento, lembra?”

Continua depois da publicidade

Foi a gota d?água. Respirou fundo, controlou suas emoções. Saiu da sala de reuniões emoldurada por um quadro com pintura das águas do mar batendo no rochedo. Destrancou a porta de sua sala. Entrou. Andou seis passos. Tirou da pasta de couro preta o terceiro envelope, em busca de orientação. Com lágrimas nos olhos, leu: “Escreva três bilhetes”.