Como se não bastasse estarem distantes no tempo, as histórias de Tévye dizem respeito a um espaço que também não existe mais. Trata-se de uma larga faixa europeia do extinto Império Russo na qual a população judaica tinha permissão para residir (daí ter sido batizada de Zona de Assentamento).

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Esse era o território do shtetl (pronuncia-se chtêitel), a aldeia judaica, de onde procedia a maioria dos judeus europeus que imigraram para o continente americano nos séculos 19 e 20.

Do mundo perdido do shtetl restou, porém, um vestígio monumental: o ídiche. Esse idioma do exílio, misto de alemão, russo, polonês, hebraico, entre outras, era a lingua franca dos judeus da Europa Central e Oriental, excetuadas as possessões otomanas. Nada mais natural que se tornasse o meio de expressão dos grandes escritores populares de origem judaica do século 19 – especialmente do maior deles, Scholem Aleikhem (1859 – 1916).

Nascido Solomon Rabinovich, na Ucrânia, então parte da Rússia, Aleikhem adotou como nome literário a expressão ídiche scholem aleikhem (“a paz seja convosco”), usada como saudação. Foi professor, investidor e jornalista, mas alcançou fama com seus contos e romances. Centenas de milhares de pessoas acompanharam seu sepultamento, em Nova York.

É em ídiche que Tévye, o narrador, se dirige a Aleikhem (tratado como pani ou “senhor”, em polonês) e desfia suas histórias. O anti-herói dos contos é um pobre trabalhador, pai de sete filhas, que experimenta uma modesta ascensão social ao ganhar uma vaca e passar de lenhador a leiteiro.

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Recebeu os fundamentos de uma educação religiosa, o que lhe permite povoar o discurso com citações das Escrituras e dos livros rabínicos. Seu companheiro de todas as horas é o anônimo cavalo velho que puxa a carroça de leite – uma dupla, homem e animal, na qual alguns viram semelhança com Dom Quixote e Rocinante.

Diferentemente do cavaleiro de Cervantes, Tévye tem um senso resignado de justiça: vê a si mesmo como um joguete de Deus, um Jó (“Como diz o versículo: ‘Queiras ou não, tens de viver!'”, repete). É abandonado pelas filhas, fustigado pelos gentios, expulso da terra. O único bem intocado desse Lear miserável é a ironia (“Sabe de uma coisa, pani Scholem Aleikhem? Falemos de algo mais alegre: o que me diz da epidemia de cólera em Odessa?”).

O universo de Tévye, o Leiteiro é mais sombrio e desencantado do que o de sua adaptação para o cinema, O Violinista no Telhado, mas, por isso mesmo, mais vivo e autêntico. É por isso que a criação centenária de Scholem Aleikhem não perde atualidade: ela nos apresenta um pouco a nós mesmos.

SERVIÇO:

Tévye, o leiteiro

De Scholem Aleikhem. Tradução de Jacó Guinsburg, apresentação de Berta Waldman. Perspectiva, 272 páginas, R$ 55.

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Debate sobre “Tévye, o Leiteiro” com Cíntia Moscovich e Abrão Slavutzky, nesta quarta-feira, às 19h, na Livraria Cultura do Bourbon Country (Av. Túlio de Rose, 80, loja 302)

Onde estacionar: há estacionamento pago no shopping