De seu, só tinha a si mesmo, e não completamente. Atribuída a um personagem de Claraboia, romance póstumo que chega às livrarias pouco mais de um ano após sua morte, a frase também descreve o José Saramago que se revela nas 377 páginas do livro – cuja história, em si, já revela outro tanto sobre o autor.

Continua depois da publicidade

Finalizado em janeiro de 1953, sob o pseudônimo Honorato – com que o escritor do já publicado Terra do Pecado (1947) costumava assinar contos que saíam em jornais e revistas portugueses -, Claraboia foi enviado por um amigo de Saramago a uma editora.

Então com 30 anos, o autor não recebeu nem resposta, nem o original de volta. Levou cerca de 20 anos para aventurar-se a escrever novo romance (Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977). E foi apenas quase 40 anos depois, já dono de um estilo particular de escrita e narrativa que lhe garantiu um lugar entre os maiores da língua portuguesa (além de um Prêmio Camões, em 1995, e um Nobel de Literatura, em 1998), que Saramago voltou a ouvir falar de Claraboia: alegando ter encontrado o original durante uma mudança, a editora agora queria lançá-lo. Turrão, cético e orgulhoso como só, recusou-se – jogou o livro ao fundo de uma gaveta e legou sua sorte à vontade dos herdeiros, mas somente depois que morresse.

Ler Claraboia é deliciar-se com um Saramago que já se apresentava em estilo e, principalmente, ideias – ainda que não completamente. Permeando as histórias das famílias que dividem um edifício modesto em Lisboa, surgem os ideais socialistas defendidos ferrenhamente pelo escritor de Ensaio sobre a Cegueira (1995), além da força mesmo sob opressão das figuras femininas – incluindo uma espanhola presa a um casamento infeliz, vítima de uma inversão do ditado português segundo o qual “da Espanha nem bons ventos, nem casamentos”. Ironicamente, quem traz o livro a público é justamente outra espanhola, Pilar Del Río – companheira e amor maior de Saramago até o fim da vida. Se não estão lá as frases sem fim, sem pontuação formal e remetendo à oralidade da contação de histórias em Portugal, já aparecem vestígios do que viria a ser esse estilo, com fluxos de pensamento por vezes pontuando a estrutura em estilo clássico, de narrador onipresente, frases curtas e diálogos bem demarcados por travessões.

Continua depois da publicidade

Lembrando a estrutura do encantador documentário Edifício Master (2002), do brasileiro Eduardo Coutinho, a narrativa de Claraboia justifica o título: Saramago lança luz sobre e nos convida a conhecer a intimidade das famílias que dividem um mesmo edifício – desde mãe, tia e sobrinhas que vivem em um isolamento afetivo dos homens até a amante de um homem de negócios a quem todos fingem não condenar, passando pela garota sonhadora e com aspirações modernas, o casal devastado pela perda da filha ainda criança, o filho adoentado pela falta de amor do pai e pelo amor irracional da mãe e, finalmente, o rapaz cheio de inconformismo que aluga um quarto no apartamento de um sapateiro comunista. Nos diálogos destes dois últimos, veem-se lampejos do próprio Saramago, ora representado pelo ceticismo do jovem Abel, ora incrustado nos ideais solidários e engajados do velho Silvestre.

Ao costurar histórias e vidas tão diferentes, mas tão semelhantes em seus desejos reprimidos, insatisfações e na necessidade de conformar-se às aparências e às regras sociais, Saramago apresenta a época em uma colcha de retalhos que aqueceria mesmo hoje – provando a perenidade de uma obra calcada no que de mais fundo o ser humano oculta, aquilo que tempo e lugar não mudam, apenas modificam. Surpreende a maturidade do escritor com apenas 30 anos – ele que sempre foi considerado um autor “tardio”, até pelo desconhecimento da existência desse mesmo livro.

De leitura fluida e ao mesmo tempo aprofundada, Claraboia encerra uma contribuição valorosa aos fãs de Saramago – e tem tudo para se tornar uma janela de entrada de luz para novos devotos.

Continua depois da publicidade