A entrevista teria que ser amistosa, mas nem por isso com aquelas perguntas que levassem a respostas tipo “teses de doutorado”, pediu logo na largada o cineasta blumenauense Sylvio Back, uma entidade da cultura nacional.

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Tentamos, e só não fomos mais objetivos por conta do eletrizante assunto, o documentário “O Contestado – Restos Mortais”, que estreará nacionalmente hoje em Florianópolis (no Cinespaço do Beiramar Shopping) e Curitiba. É compreensível, pois a produção, que levou oito anos para ser concluída, marca o retorno do diretor a um tema que lhe é caro, desde “A Guerra dos Pelados”, épico ficcional de 1971.

São quatro décadas de lacuna, onde o autor teve que desconstruir o romantismo do primeiro filme para abrir novas brechas de compreensão sobre o complexo e mais duradouro conflito armado ocorrido na história do país, que teve como teatro de operação quase que a metade do território que hoje faz parte de Santa Catarina.

Para reescrevê-lo, Sylvio foi aos fatos, aos registros históricos, documentais, orais e empíricos, mas também flertou com o controverso elemento da mediunidade e do espiritismo para conferir uma liga poética. Artifício que ele já havia lançado mão em “O Autorretrato de Bakun”, um premiado documentário de 1984.

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Mas os fantasmas que ele busca desenterrar em “O Contestado” estão além do limbo da morte, é a história de civilização e barbárie que, cem anos depois, está condenada a vagar pelo esquecimento. Confira na entrevista concedida pelo autor:

Diário Catarinense – Depois de quatro décadas, você volta a um tema do Contestado, com uma abordagem histórica e documental, mas lançando mão de uma narrativa insólita, que são os depoimentos a partir de transes mediúnicos. Até que ponto isso confere ou tira a credibilidade da investigação?

Sylvio Back – Eu não sou um documentarista lato sensu, ou seja, ao longo da minha carreira fiz várias filmes, como “Guerra da República” e “Revolução de 30”, que são docudramas, um misto de documentários com drama e ficção. Muitas vezes o real não dá conta do imaginário e o só o imaginário não dá conta do real. Meu cinema investe no imaginário, porque ele não se deixa corromper.

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O transe mediúnico é como se fosse um poema, há uma dificuldade em codificá-lo. Os especialistas em literatura dizem que se você explicar um poema ele deixa de sê-lo, é aquela criação humana que exige sempre um novo olhar. E o cinema tem mil olhos também e foi com eles que eu tentei o transe mediúnico como uma narrativa cinematográfica. Eu não sou um espírita militante. Eu tomei com todo respeito e admiração o transe mediúnico como uma instância do consciente coletivo do homem e a espiritualidade e a mediunidade era uma espécie de argamassa que reunia aqueles milhares caboclos fanatizados na sua maioria, as virgens videntes.

Dentro do filme há essa discussão, uns dizem que aquilo era tudo empulhação, que ninguém recebia as mensagens do monge José Maria ou dos outros João Marias e outros afirmam que as virgens eram santas mesmo, era um elenco plasmático, que recebiam as ordens do além para a criação do Exército Encantado de São Sebastião. Se é verdade ou mentira, eu coloquei a discussão dentro do filme para o espectador. Eu gosto de deixá-lo desarvorado, que ele pense comigo e não que eu pense por ele.

DC – E como foi gravar as sessões mediúnicas?

Back – Em Gramado (o festival) teve gente me disse: “poxa, mas você é um grande diretor de atores.” Eu disse “não! aquelas pessoas estão em transe mesmo.” Nós passamos meses visitando centros espíritas lá no planalto, no centro-oeste de Santa Catarina e em Florianópolis.

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Durante as filmagens levamos vários grupos aos locais onde há testemunhos e vestígios arquitetônicos de que houve os massacres e a ocorrência de valas crematórias. Nós gravamos uma sessão próxima a uma dessas valas, em Lebon Régis, onde todos os médiuns entraram em transe simultaneamente. E nós ali, a equipe, sentimos uma energia louca. Foram 17 horas de gravações e ali tem vários momentos de pessoas feridas, recebendo ordens, reclamando pela terra, com ódio.

A ideia sempre foi utilizar o transe mediúnico como elemento de linguagem apenas. É como um poema, que só é codificado quando cercado de testemunhas do assunto. Ele faz sentido quando articulado com os 20 especialistas com os quais conversamos, os velhos ouvidos, os documentos, as fotos, os filmes e músicas da época resgatados. Não sou espírita e o filme não é espírita militante.

DC – Entre “A Guerra dos Pelados” e “O Contestado – Restos Mortais”, quais os fantasmas que assombram hoje o Contestado e a você?

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Back – “A Guerra dos Pelados” foi um filme heroico e até um certo ponto romântico, porque naquele final dos anos 1960 havia uma polarização política muito grande. Tinha uma ditatura. Lembro que a delegacia de polícia de Curitibanos queria fichar toda a equipe de figuração. Saiu uma notícia em um jornal de Caçador dizendo que fingíamos que estávamos gravando, quando na verdade era um treinamento de guerrilha.

O filme foi até chamado de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (de Glauber Rocha) do Sul. São filmes utópicos, românticos. Acontece que depois deste filme, entre 1970 e 1975 definitivamente caiu o Muro de Berlim na minha história e, a partir dali, eu pisei no terreno da dúvida. Eu sou um cineasta que faz filmes que desconfiam, tanto da versão do vencedor quanto da versão dos vencidos e eles também mentem.

Há o poema que diz que a “primeira vítima de uma guerra é a verdade”. Ao retomar o Contestado, que nos últimos anos eu vinha acompanhando esse processo de esquecimento e diluição, eu pensei em um documentário e descontruir algumas coisas que eu deixei incólume em “A Guerra dos Pelados”, como por exemplo, o capitalismo, que praticamente nasceu no Brasil no Contestado. Um conjunto de multinacionais implantou levou para uma área arcaica a civilização e com ela, como se sabe, vem a barbárie. Houve terrorismo de ambos os lados.

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Ambos os lados praticaram a degola. O Contestado tem uma complexidade de natureza, não é uma luta de bandidos contra mocinhos e acho que o filme abre novas brechas para a compreensão do episódio, além de tirá-lo do limbo.

DC – Lançá-lo no ano do centenário foi uma decisão programada?

Back – Eu comecei a mexer nisso em 2004 e levantei os recursos até 2008, quando eu filmei. Terminei em 2010, 2011 e tem que se levar em conta a dificuldade que é lançar no Brasil um filme dessa pegada, um docudrama, com um tema histórico desconhecido. Hoje existem cerca de 70 filmes brasileiros que não têm tela. Eu estava tentando evitar ser um “sem-tela”. Então eu consegui um distribuidor no ano passado, mas aí caiu a ficha que 2012 seria o centenário, então optamos por segurar. Porque, independente do filme está saindo muita coisa sobre o Contestado.

DC – Além do circuito em capitais, há uma programação de exibição pela região do Contestado.

Back – A ideia é, a partir do dia 25 de novembro, vamos de Mafra a Porto União, União da Vitória, Mattos Costa, Canoinhas, Caçador, Curitibanos, Joaçaba, Irani, Concórdia e Lages para exibir o filme gratuitamente. É um agradecimento pela recepção que a gente teve. O teatro de operações do Contestado é do tamanho do Estado de Alagoas. A Guerra dos Pelados foi o meu passaporte par voltar lá e as portas foram abertas. Por isso é uma contrapartida, não social, mas moral.

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DC – Pesquisando sobre a “A Guerra dos Pelados”, eu assisti ao filme, na íntegra, no YouTube. Você admitira o mesmo com “O Contestado – Restos Mortais”? Como você vê a questão da difusão pela internet?

Back – Aaaah pois é, está lá né?! (risos) Eu sou um defensor irredutível dos direitos autorais. Essa coisa é tão gigantesca que, se não for tomada uma medida coletiva, dos criadores, é impossível rastrear isso. É triste, porque você trabalha anos, no meu caso foram oito, com muita dificuldade. Vou fazer o quê com os 30 mil acessos que “Guerra do Brasil” teve (no YouTube)? Meu filme teve mais acesso na internet do que nos cinemas. E não é qualquer um, é gente que está estudando a Guerra do Paraguai. É um público ótimo. Então eu quero que amanhã “O Contestado” esteja também acessível, entendeu? É bem verdade que o filme custou pouco mais de R$ 1,3 milhão e é lastimável que você não seja remunerado. Afinal, como o americano diz “o cinema é uma indústria, o filme é arte”.

>>> Confira um trecho do documentário: