Aos 69 anos e com fortes raízes com o Sul de Florianópolis, o cineasta nativo Ademir Damasco realizou o trajeto de volta à Ilha de Santa Catarina durante 11 dias, aproveitando para registrar suas impressões e lindas imagens das praias e costões. Entre os dias 25 de setembro e 6 de outubro, ele embarcou na viagem à pé de volta à ilha em busca de autoconhecimento e também para preservar e fazer um resgate da cultura nativa, que “está desaparecendo com o aumento exponencial de imigrantes e turistas nas últimas décadas”.
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— Uma coisa curiosa é que não encontrei nenhum conhecido meu e nem muitos outros nativos pelo caminho. Isso reforça que nós estamos diluídos no meio dessa multidão de gente que mora aqui. Nós (nativos) estamos invisíveis — relata Ademir, que saiu de casa no mesmo dia em que começaram as fortes chuvas que atingiram e causaram estragos em Santa Catarina.
Durante a jornada de 313.380 passos, 235 quilômetros e 11 dias de viagem, Damasco colocou em prática um roteiro escrito há mais de cinco anos, passando por trilhas, praias, ruas e costões no contorno da cidade para concluir o objetivo de escrever um livro e gravar imagens e entrevistas para seu próximo documentário.
Uma jornada de autoconhecimento
O pontapé inicial da viagem foi a Servidão Sérvulo Chagas, no Campeche, quando saiu de casa pelo mesmo portão que voltaria 11 dias depois. Paisagens do litoral e da costa de Florianópolis, em praias como Lagoinha do Leste, Açores, Solidão, Naufragados, Santo Antônio de Lisboa, Jurerê, Canasvieiras, Ingleses, Barra da Lagoa e tantas outras foram dando o tom da odisseia de Ademir, que chegou a andar por mais de 11 horas e 35 quilômetros em um único dia, do Ribeirão da Ilha até o Centro.
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— Tem certas metas que tem que ser cumpridas para comer e para dormir, senão acaba ficando no mato.
Durante o percurso, o cineasta dormiu em hostels e pousadas (não queria levar o peso de uma barraca e acessórios), comeu em restaurantes, fez pequenas compras em supermercados, filmou, fotografou e escreveu, conversou com nativos e estrangeiros.
Também conseguiu completar ideias do roteiro que não sabia se aconteceria, como se alimentar sozinho em uma praia deserta e cortar o cabelo. No entanto, durante toda a experiência, o que mais o surpreendeu foi ter encontrado uma cidade limpa e preservada.
— Eu achei que ia encontrar uma sujeira danada, plástico, linha, mas não achei nada. Foi uma grata surpresa andar por costões e trilhas e não encontrar muito lixo pelo caminho. Outra coisa que me chamou atenção foi o Norte da Ilha, a partir de Santo Antônio: uma cidade muito concretada. Muito prédio, muito condomínio fechado, muita invasão de área de preservação — relata Ademir, que, depois de cada dia de jornada, ainda tinha que escrever, mesmo que exausto, todas as observações pessoais e profissionais para não se perder na organização de ideias.
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Para a captação de imagens, o cineasta levou equipamentos mínimos: um celular (com o contato apenas do filho e da assessora) e uma câmera GoPro pequena. Na mochila de costas, foram cerca de 15 quilos, entre calças, moletons, tênis, roupas, medicamentos, curativos e demais itens que seriam necessários ao longo da viagem.
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Já no processo de elaboração de ideias para marcar a quilometragem de sua jornada de uma forma atrativa, Ademir teve como inspiração um relógio usado pelo neto desde a infância: um marca-passos. Foi daí que nasceu o nome do documentário: “A ilha em 313.380 passos”.
— Cada passo tem 0,75 a 0,80 centímetros. Eu ia registrando a quantidade de passos dados em cada dia. No final, quando cheguei na minha casa de volta, deram exatos 313.380 passos, uma média de 235 quilômetros. Dá para ir a Joinville (risos) — afirma Damasco.
O aventureiro possui mais de dez filmes produzidos como diretor e roteirista e tem uma ligação especial com o Sul da Ilha, especialmente com o Campeche, onde fundou um dos campeonatos de surfe mais tradicionais da cidade, o Surfoco. Seus documentários podem ser acessados no site da produtora Nativo Filmes.
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Confira como foi a jornada do cineasta em imagens
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A viagem de volta à ilha de Ademir Damasco
A preocupação com as condições climáticas e com a qualidade das filmagens do documentário não eram as únicas incerteza durante o trajeto. Como estava sozinho e nunca havia feito um percurso que exigisse tanto do seu corpo e mente (a não ser viajar de avião, sua maior fobia), Ademir Damasco teve que tomar cuidado extra com acidentes, especialmente em trilhas e costões, além de encontrar dentro de si uma concentração e resistência física que não sabia ainda existir.
— Nunca tinha ficado tanto tempo sozinho assim, é uma experiência diferente. Como estratégia, eu não pensava na distância que ainda tinha que percorrer no dia, mas sim em cada mini pedaço e trecho à vista. Queria chegar no próximo monte de areia, depois na próxima calçada, na próxima árvore, e assim por diante — destaca sobre as adaptações que teve que criar ao longo do percurso para conseguir completar o trajeto.
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Em alguns trechos, o nativo chegou a se perder e andar em círculos por horas, já que abriu mão de levar mapas físicos, bússolas ou qualquer outra forma de orientação. Trilhas paralelas criadas por bois, vacas e cavalos em algumas áreas dificultaram a identificação dos caminhos, que, segundo o cineasta, não estão devidamente sinalizados pelos órgãos ambientais.
Em outros trechos, em que o contorno exato à ilha não era possível por conta da geografia do lugar, teve que passar por ruas paralelas.
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— Fiz cerca de 80% pelo litoral e 20% por caminhos alternativos. De Sambaqui até a Daniela, por exemplo, não dá para passar porque tem um mangue muito grande. E também era um princípio não embarcar em qualquer tipo de veículo motorizado. Posso andar a pé, de bicicleta, posso andar de carro de boi, menos de motorizado. Fazia parte do roteiro — ressalta, afirmando que teve mais dificuldades ao contornar o Sul de Florianópolis, região mais acidentada e mais afetada pelas chuvas de outubro.
— O Norte é muito fácil, porque a ilha é muito dividida, nós somos virados para o Leste, para o Oceano Atlântico. Ou seja, a parte selvagem do mar está do Leste para o Sul. Contornando dos Ingleses até o Ribeirão da Ilha, é um mar ‘mais de dentro’ como a gente chama, mais calmo. Da Barra da Lagoa até Naufragados, são águas bem mais agitadas, o que dificulta a passagem por costões.
Durante a jornada, ele relata ter comido pouco, alegando que o corpo ficava tão exausto que só queria descansar. Além disso, tiveram dias em que andou por quilômetros para achar uma única pousada aberta para se abrigar, o que revela, segundo ele, que “a ilha não é tão turística quanto diz ser”.
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Apesar de alguns perrengues, como perder blusa, óculos, capa de chuva, um par de meia, três quilos no peso e até um dedo da unha, que o tênis “devorou” e o obrigou a andar descalço por alguns trechos, Damasco se sente realizado por ter conseguido completar a volta à ilha em segurança.
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— Esses bens materiais foram o que eu perdi, mas o que eu ganhei é todo o resto. Felicidade, estou bem de saúde, gravei meu filme e fiz uma aventura que pouca gente faz, ainda mais aos 69 anos.
Roteiro antigo e preocupação ambiental do documentário
Apesar da execução do roteiro ter acontecido em uma viagem solitária do cineasta, cinco anos após sua concepção, a ideia original era diferente. O nativo queria sair com o filho Gustavo, que é editor de vídeos profissional e participa da produção de todos os filmes do cineasta, seja como assistente de direção, assistente de roteiro ou editor.
— A gente ia sair para acampar e colocar uma parte gastronômica nativa da ilha como parte do projeto, fazer comida, pegar ostra e tudo mais. Como ele não tinha muito tempo disponível na época, acabou não rolando. Mas aí eu lembrei da ideia nos últimos meses e decidi ir sozinho, mesmo com outras pessoas demonstrando interesse em acompanhar a jornada — afirma.
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O cineasta relata também que pretende voltar em alguns lugares que não estavam na rota ou que a chuva interferiu no processo de gravação para fazer a captação de imagens de cobertura, como em Ratones, onte tem raízes familiares e históricas, e Naufragados.
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Além disso, outra preocupação é a parte ambiental de preservação da vegetação nativa da cidade.
— Colher lixos pelas praias, plantar árvores nativas, muitas delas ameaçadas de extinção, coisas assim. E também vou ainda na Ilha do Campeche a nado, que é um percurso que eu já fiz mais de 50 vezes de prancha. Isso para o filme é muito bom, registrar tanto esse visual lindo até lá quanto as inscrições rupestres — ressalta, dizendo que só escreve o roteiro final depois que tem todas as informações, histórias e captações de áudio e vídeo em mãos.
Sobre a proposta de narrativa do longa-metragem, o objetivo é contar a história da viagem de forma linear, mostrando cada lugar que Ademir passou de forma cronológica, com ele claramente inserido nas cenas, assim como fez em outras produções.
— A maioria do filme vai ser bem silencioso, com barulhos de natureza e pequenas narrações em determinados trechos. E andando, andando e andando, quase um road movie — conta o viajante, que explora diferentes formatos em suas produções, como plano sequência (sem cortes, tomada única), clipes, filmes, curtas e documentários.
Veja a vida e a carreira de Ademir Damasco em imagens
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Fotografia, surfe e reconhecimento internacional
Até se aventurar na jornada de volta à Ilha de Santa Catarina para gravação do documentário, Ademir Damasco passou por muitas experiências profissionais e pessoais. A paixão pelo cinema e pelo meio artístico vem desde a adolescência, quando tocava e vendia gibis com amigos no extinto Cine Ritz, no Centro da Capital.
— O que eu filmo sou eu, é minha turma, retrata meu bairro. O que eu mais fiz na vida foi fazer filmes, sabe? O que eu mais li, vi, fiz roteiro, escrevi… o que eu mais me ocupei foi com isso.
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Entre surfar desde os 17 anos de idade (um dos pioneiros do esporte em Florianópolis, no início da década de 1970), trabalhar como bancário por dez anos, viver de forma autônoma por outros 25 anos comprando e revendendo terrenos, se dedicar à fotografia esportiva e ter em diretores como Woody Allen, Martin Scorsese e Quentin Tarantino grandes referências cinematográficas, o nativo encontrou em um curso do Centro Integrado de Cultura (CIC), ainda em 1995, uma oportunidade de entender como funcionam os bastidores, criação de roteiro, story board e demais aspectos de produção da sétima arte.
No entanto, o primeiro documentário só foi lançado oficialmente em 2006 (Seu Chico e o presente), momento em que passou a mergulhar de cabeça no mundo do cinema e produzir de forma intensa e volumosa. Como nunca obteve nenhum retorno financeiro significativo com seus filmes, a produção cinematográfica se tornou praticamente um hobby na vida de Ademir Damasco.
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— Eu sou completamente autônomo. Dou meu tempo, dou meu dinheiro e faço meu filme. Mas tem uma vantagem. Eu faço o filme que eu quero, entendeu? Do tamanho que eu quero, não devo nada a ninguém. E esses filmes já me levaram para circuitos na Alemanha, na França, por todo o mundo — destaca com orgulho sobre os documentários exibidos em festivais nacionais e internacionais, como o SAL (Portugal), Planeta.Doc (SC), Florianópolis Audiovisual Mercosul (SC), Cinecipó (MG) e Festicini (SP).
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— Tem uma frase do Tolstói que é a maior realidade que eu levo para a vida. “Quer ser universal, canta a tua aldeia”. A universalidade cara…. se eu for passar um filme meu lá na Ucrânia, lá no Cazaquistão, ele vai entender o meu filme. Eu estou falando de uma cultura, estou falando de um povo, entendeu? Não preciso nem botar legenda. O que eu faço é universal, e essas oportunidades são importantes para levar minha arte e minha cultura para fora do país.
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Questionado sobre o fôlego para novos filmes, diz estar ativo e ainda ter bastante coisa para produzir.
— Agora com essa jornada de volta à ilha, vai sair meu primeiro longa-metragem. Ainda estou captando imagens para cobertura, mas já está em produção — afirma o cineasta, que não gosta de ser chamado e nem usa o termo “manezinho”, por considerar pejorativo e ofensivo.
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— Sou nativo, sou ilhéu, sou da ponte pra cá.
Veja publicação de Ademir Damasco no dia que saiu para a jornada de volta à ilha
“MINHA JORNADA. Faz algum tempo que tenho um roteiro, assim como tantos outros, que para mim é um dos mais importantes e acho que vai ser importante também para a cidade, visto que disponibilizo tudo que produzimos para quem precisar e coloco à disposição na Casa da Memória para pesquisa.
Vou dar a volta à ilha a pé ou por qualquer outro veículo que encontrar pelo caminho, desde que não seja motorizado. Pode ser bicicleta, ,carro de boi, quem sabe até um galiote. Vou sozinho, mas, em alguns trechos que não conheço bem, vou ter um guia que será algum amigo meu.
Andarei o máximo que puder pelo litoral, olhando para o mar, afinal somos uma Ilha.
Uma viagem de AUTO e AMPLO conhecimento. Auto Conhecimento é o Ademir Damasco, solitário com tempo para questionamentos sobre a vida e o sentido dela. Amplo Conhecimento é o Ademir Damasco a trabalho, como cineasta, diretor e escritor.
Quero observar, conversar, denunciar o que achar pelo caminho, sem nenhum roteiro definido. O que achar interessante (e devo achar muita coisa), vou registrar. Vou fotografar, filmar e escrever. Com todo esse material, pode sair um livro, uma websérie ou um documentário longa-metragem.
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Devo ficar na estrada por volta de 10 dias. A partir de agora vou estar desconectado, prefiro assim para me concentrar no meu objetivo. As pessoas que estão comigo nas fotos são aquelas que vão me dar apoio, então quem quiser saber algo sobre a empreitada fale com um deles que tu conheça.
É provável que quando tu ler esse texto eu já estarei andando. Espero que tudo corra bem.. e vai.
Quem sabe a gente não se encontra por aí”, publicou nas redes sociais.
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FOTOS: Praia do Morro das Pedras está há 4 meses com mureta caída, em Florianópolis