*Por Heather Murphy

Em abril, mais de três meses antes de qualquer vacina para o coronavírus entrar em grandes testes clínicos, o prefeito de uma pitoresca cidade insular no Noroeste do Pacífico convidou um amigo microbiologista para vaciná-lo.

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A conversa ocorreu na página do prefeito no Facebook, para o horror de vários moradores de Friday Harbor que a seguiram.

“Devo aparecer e começar sua vacina????? Não se preocupe, sou imune – eu me protegi cinco vezes com minha vacina”, escreveu Johnny Stine, que dirige a North Coast Biologics, empresa de biotecnologia de Seattle especializada em anticorpos.

“Pode ser”, escreveu Farhad Ghatan, o prefeito, depois de algumas perguntas.

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Vários moradores demonstraram seu ceticismo na conversa. Eles foram massacrados pelo prefeito, que defendeu seu amigo de 25 anos como um “cientista farmacêutico de vanguarda”. Quando os moradores mencionaram preocupações adicionais – sobre as credenciais de Stine e a injustiça de incentivá-lo a visitar a ilha de San Juan, apesar das restrições de viagem –, Stine rebateu com insultos vulgares. (O mais nerd e publicável: “Espero que suas células epiteliais pulmonares tenham uma boa expressão da ACE2, para que você morra mais rapidamente de nCoV19.”)

Vários moradores relataram tudo isso a várias agências policiais e reguladoras. Em junho, o procurador-geral de Washington entrou com uma ação contra Stine, não só por apresentar alegações sem embasamento ao prefeito, mas também por administrar sua vacina não comprovada a cerca de 30 pessoas, cobrando US$ 400 de cada uma. Em maio, a FDA (agência norte-americana responsável pelo controle de alimentos e medicamentos) enviou uma carta a Stine, alertando-o para parar de apresentar seu produto de forma enganosa.

Embora suas táticas promocionais fossem incomuns, Stine estava longe de ser o único cientista a criar vacinas experimentais contra o coronavírus para si mesmos, familiares, amigos e outros interessados. Dezenas de cientistas ao redor do mundo fizeram isso, com métodos e afirmações extremamente variados.

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(Foto: Kayana Szymczak / The New York Times)

A tentativa credenciada mais impressionante é a da Rapid Deployment Vaccine Collaborative (Colaboração para uma Vacina de Utilização Rápida), ou RaDVaC, grupo que conta com George Church, famoso geneticista de Harvard, entre seus 23 colaboradores listados. (A pesquisa, no entanto, não está sendo feita no campus de Harvard: “O laboratório do professor Church trabalha em vários projetos de pesquisa da Covid-19, mas ele garantiu à Escola de Medicina de Harvard que o trabalho relacionado à vacina da RaDVaC não está sendo realizado em seu laboratório”, disse um porta-voz da faculdade.)

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Entre os projetos mais secretos está o CoroNope, que se recusa a nomear qualquer pessoa envolvida porque, de acordo com a pessoa que responde às mensagens enviadas para a conta de e-mail anônima do grupo, os biólogos, “menos de meia dúzia” deles, não querem correr o risco de se meter em problemas com a FDA ou com seus empregadores.

Cada tentativa no estilo “faça você mesmo” é motivada, pelo menos em parte, pela mesma ideia: tempos excepcionais exigem ações excepcionais. Se os cientistas têm a habilidade e a ousadia para elaborar uma vacina por conta própria, devem fazê-lo, segundo a lógica. Os defensores afirmam que, se forem avaliados com base em suas afirmações e se forem transparentes em relação ao processo, todos poderíamos nos beneficiar do que eles aprendem.

Mas os críticos dizem que, por mais bem intencionados que sejam, esses cientistas não vão descobrir nada de útil porque suas vacinas não estão sendo testadas em estudos randomizados e controlados por placebo. Além disso, tomar essas vacinas pode causar danos – seja com reações imunológicas graves e outros efeitos colaterais, seja com uma falsa sensação de proteção.

“Se for aplicada em você mesmo, não há muito que se possa fazer”, declarou Jeffrey Kahn, diretor do Instituto de Bioética Johns Hopkins Berman. Mas, uma vez que alguém começa a encorajar outras pessoas a experimentar uma vacina não comprovada, “essa pessoa está voltando para os dias da medicina de patentes e charlatanismo”, disse ele, referindo-se a uma época em que os remédios eram amplamente vendidos com promessas mirabolantes, mas enganosas.

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‘Somos os animais’

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(Foto: Jovelle Tamayo / The New York Times)

O esforço de desenvolvimento da vacina da RaDVac, relatado pela primeira vez pela “MIT Technology Review”, é diferente do projeto de Stine de duas maneiras importantes. Não há planos de cobrar pela vacina. E, ao contrário dos discursos expletivos de Stine no Facebook, a RaDVaC tem um documento científico de 59 páginas para explicar o funcionamento e para orientar outros que possam querer preparar a fórmula da vacina por conta própria.

“O trabalho é bastante impressionante”, comentou Avery August, imunologista da Universidade Cornell, em Ithaca, Nova York, que não está envolvido com o RaDVaC.

Mas a motivação de ambos os projetos é semelhante. Em março, quando Preston Estep, cientista de genoma que vive na área de Boston, estava lendo sobre pessoas que morriam em meio à pandemia, jurou que não ficaria de fora. Enviou um e-mail a alguns químicos, biólogos, professores e médicos que conhecia para ver se algum deles estava interessado em criar a própria vacina. Logo, eles tinham criado uma fórmula para uma vacina de peptídeo que poderia ser administrada por meio de spray nasal.

“É muito simples: consiste em cinco ingredientes que você pode misturar em um consultório médico”, disse Estep.

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O ingrediente-chave: pequenos pedaços de proteínas virais, ou peptídeos, que os cientistas encomendaram on-line. Se tudo corresse bem, os peptídeos treinariam o sistema imunológico para se defender contra o coronavírus, mesmo sem o vírus real presente.

No fim de abril, Estep se juntou a vários colaboradores em um laboratório para preparar a mistura e pulverizá-la nas próprias narinas. Church, mentor de longa data de Estep, contou que a tomou sozinho em seu banheiro para manter as precauções de distanciamento social.

Estep também deu a vacina a seu filho de 23 anos, e outros colaboradores também a compartilharam com seus familiares. Até agora, ninguém relatou nada pior do que nariz entupido e uma leve dor de cabeça, segundo Estep. Ele também refinou a receita, removendo e adicionando peptídeos à medida que novas pesquisas sobre o coronavírus surgiam. Até agora, já pulverizou oito versões no nariz.

Um fluxo de trabalho tradicional de desenvolvimento de drogas começa com estudos em camundongos ou em outros animais. Para a RaDVaC, de acordo com Estep, “somos os animais”.

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Mas, sem testes clínicos rigorosos, afirmou August, não há maneira confiável de saber se o produto é seguro ou eficaz. Ele disse temer que as credenciais de prestígio dos cientistas possam implicar o contrário.

Church declarou que respeitava o processo de avaliação tradicional, mas que também deveria haver espaço para “pré-pesquisa”, e que a maior parte daquilo com que havia se envolvido ao longo de sua carreira – incluindo a edição de genes em células humanas – foi considerado “marginal” no início.

Na semana passada, segundo Estep, cerca de 30 pessoas nos Estados Unidos, na Suécia, na Alemanha, na China e no Reino Unido haviam tomado a vacina. Ele contou que um professor universitário no Brasil lhe disse que estava pensando em produzir a vacina em seu laboratório e distribuí-la de graça.

Vacina via Facebook

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(Foto: Jovelle Tamayo / The New York Times)

Há uma longa história de cientistas testando abertamente vacinas em si mesmos e em seus filhos, mas nas últimas décadas isso se tornou menos comum, de acordo com Susan E. Lederer, historiadora médica da Universidade de Wisconsin-Madison. Aquilo que é ética e legalmente aceitável para testar e distribuir um produto médico próprio varia de acordo com a instituição e com o país.

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Em agosto, o Instituto de Pesquisa Científica para Problemas de Segurança Biológica, uma instituição governamental do Cazaquistão, anunciou que sete funcionários haviam se tornado as primeiras pessoas a experimentar a vacina contra a Covid-19 que estava desenvolvendo. Cientistas russos e chineses afiliados ao governo e a instituições acadêmicas fizeram pronunciamentos semelhantes em meio à pandemia.

O problema com o produto de Stine, de acordo com o procurador-geral Bob Ferguson, de Washington, não é que ele o tenha tomado. É que ele “vendeu essa chamada vacina para pessoas em Washington que estão assustadas e que têm, portanto, maior propensão a procurar uma cura milagrosa no meio de uma pandemia mundial”, escreveu Ferguson em um comunicado. A ação também cita as alegações de segurança e eficácia não comprovadas de Stine.

Em março, poucos meses depois de anunciar que tinha se vacinado, e a seus dois filhos adolescentes, ele postou um anúncio da North Coast Biologics na página do Facebook. Depois de décadas trabalhando com anticorpos, Stine disse em uma entrevista que sabia que fazer uma vacina deveria ser “muito fácil”.

Ele descreveu um trabalho que soava um pouco como escrever roteiros para Hollywood que nunca se tornam filmes. Ele fabrica anticorpos que poderiam ser usados contra vários patógenos e os vende a empresas que poderiam usá-los para desenvolver drogas, mas que provavelmente não o farão. De acordo com o processo do procurador-geral de Washington, a empresa de Stine foi dissolvida administrativamente em 2012.

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Para fazer sua vacina, ele usou uma sequência genética da proteína spike na parte externa do coronavírus para fazer uma versão sintética. Colocou-a em uma solução salina, aplicou-a sob a pele do braço e, em seguida, fez um teste para procurar anticorpos em sua corrente sanguínea. “Levei 12 dias entre baixar a sequência e testar os anticorpos”, informou ele.

Em seu anúncio no Facebook, ele alegou que isso o deixou imune ao vírus e ofereceu aos “interessados” a oportunidade de “pagar US$ 400 por pessoa”.

Como parte de um acordo que Stine acabou fazendo com os promotores, ele deve reembolsar todas as 30 pessoas que tomaram sua vacina.

Stine pareceu se divertir com isso, insistindo que poucas pessoas provavelmente pediriam reembolso. O valor pedido, segundo ele, mal cobria os custos de viagem, e muitas vezes ele não cobrava.

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Um homem de 60 anos em Montana, que pediu anonimato por questões de privacidade, contou que pagou a passagem aérea de Stine para que este o inoculasse e à sua família. Agora, afirmou, eles conseguiram voltar à “vida normal”, como almoçar com amigos cuja ocupação os coloca em alto risco de exposição. O homem até se juntou a Stine para visitar um policial amigo no estado de Washington, que tinha sido diagnosticado com Covid-19 e estava “à beira da morte”. De acordo com os três que estavam presentes, ninguém usava máscara. E Stine se sentou perto do oficial doente em um espaço fechado para lhe aplicar um tratamento.

Stine alega que sua vacina é semelhante a uma vacina recombinante que está sendo desenvolvida pela Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia. Ele também afirma que uma dose não só protegerá as pessoas contra o vírus, mas também tratará aqueles que o têm. O dr. Louis Falo, pesquisador-chefe da equipe da Universidade de Pittsburgh, disse não confiar que a vacina de Stine possa ser segura ou eficaz com base na forma como foi desenvolvida. Mesmo que fosse, disse ele, é improvável que ajudasse pessoas doentes.

Na década de 1990, Stine trabalhou para Patrick Gray, biólogo molecular que contribuiu para a descoberta de uma vacina contra a hepatite B e que agora é o executivo-chefe de uma empresa de biotecnologia.

Gray declarou em uma entrevista que a ciência que Stine publicou na Icos, a empresa de biotecnologia onde trabalharam juntos, era “sólida”, mas que o jovem cientista tinha uma tendência a exagerar. “Johnny estava com pressa para publicar seu trabalho e avançar na carreira. Normalmente, insistimos em mais confirmação e mais controles.”

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“Em relação a seus esforços científicos atuais, não acredito que Johnny seja um ‘golpista’, mas ele ignorou os regulamentos da FDA necessários para o desenvolvimento de drogas. Não é possível para um indivíduo como Johnny criar uma vacina viável”, escreveu ele em um e-mail.

O prefeito de Friday Harbor disse que se arrependeu de ter respondido à mensagem de Stine no Facebook, em vez de tê-lo feito em particular. Mas não vê motivo para se desculpar por aceitar de graça a formulação de seu amigo. “Prefiro ter a chance de ter alguma proteção a não ter nenhuma proteção e esperar e esperar”, comentou Ghatan.

A controvérsia, no entanto, acabou com os planos de se encontrarem. Mas ele disse que, se surgir outra oportunidade de ser vacinado, “eu o farei”.

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