Chico Buarque, como romancista, não é uma unanimidade. Analisada em retrospecto, a carreira do Chico prosador inclui uma novela ruim de doer (Fazenda Modelo, de 1974), dois romances que partem de premissas promissoras mas resultam bem medianos (Estorvo, de 1991, e Benjamim, de 1995) e um grande romance (Budapeste, 2003).
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Logo, seu novo livro, Leite Derramado, é a prova dos nove de que o Chico das letras (de imprensa) tem a mesma qualidade do Chico das letras (de música).
O que Chico comprova em Leite Derramado é que já conquistou algo que muitos escritores demoram tempo para conseguir: uma voz própria.
Um livro de Chico Buarque é reconhecível desde as primeiras páginas: seus protagonistas narram em primeira pessoa, o que de pronto instala no leitor a suspeita sobre sua credibilidade, uma desconfiança que Chico se compraz em aumentar, seja instaurando a dúvida sobre a sanidade do narrador (em Estorvo), seja pelo fato de a profissão do narrador ser mentir no lugar dos outros (em Budapeste).
Em Leite Derramado, Chico faz o romance transitar pelos labirintos imprecisos de uma memória senil: “A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas”.
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Leia um trecho do livro Leite Derramado no blog Mundo Livro
O protagonista, Eulálio Montenegro Assumpção, é um homem de cem anos entrevado em uma cama de hospital, dirigindo-se a vários interlocutores diferentes: uma enfermeira por quem está apaixonado, a filha que vem visitá-lo, os colegas doentes de enfermaria. O leitor não tarda a perceber que Eulálio confunde não apenas os interlocutores como os episódios que conta.
Outra característica marcante da prosa de Chico é trabalhar com símbolos. O olho mágico, em Estorvo, distorcendo o que o narrador vê e prenunciando sua loucura. A câmera em Benjamim, como símbolo do voyeurismo e o idioma em Budapeste, signo de uma pátria não conquistada.
Em Leite Derramado, o próprio Eulálio é o símbolo. Por meio do personagem, bem falante (“eulalia” é o termo para alguém com facilidade de articulação da pronúncia), que confunde antepassados e descendentes, Chico reconstrói a história do próprio Brasil.
Eulálio nasce em 1907, filho de um senador da Primeira República. Entre seus antepassados, contam-se um general e um nobre conselheiro de Dona Maria I, a Louca, todos com o nome de Eulálio (“era menos um nome do que um eco”). Na década de 1920, casa-se com Matilde, suposta filha de um deputado, mas de pele mais escura.
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A mulher desaparece, em circunstâncias que a memória em espiral do velho mais confundem do que elucidam. A filha de ambos casa-se com um filho de imigrantes italianos, e a linhagem da família termina em um tataraneto traficante de drogas. É quando se percebe o sentido da loquacidade de Eulálio.
O Leite Derramado sobre o qual ele não chora, mas não se cansa de falar, é um inventário de perdas pessoais que ele próprio, em uma ignorância típica das altas classes, ajuda a provocar, e só nota quando é tarde demais.