Felipe Schaedler tinha 15 anos quando se mudou com os pais de Maravilha, no Oeste de Santa Catarina, para Itacoatiara, a 270 quilômetros de Manaus, no Amazonas. A mudança foi como chegar a um novo país, nas palavras do próprio Felipe. Aos poucos, o garoto foi assimilando não só os costumes e o modo de viver da região, mas também a culinária amazônica: deixou para trás os sabores familiares da infância para experimentar ingredientes (e nomes) que soam exóticos por aqui, como tucupi, jambu, tambaqui, pirarucu, tucunaré, pimentas e cogumelos diversos; até mesmo vitória-régia e saúvas – sim, saúva, uma espécie de formiga.
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E foi na gastronomia amazônica que ele encontrou seu caminho: atualmente, Felipe é um dos principais responsáveis por projetar nacionalmente a culinária da região. Em 2009, em Manaus, inaugurou ao lado dos pais o restaurante Banzeiro, dedicado à cozinha local. Hoje, além da matriz, Felipe é responsável também pela lanchonete de comida regional Caboquinho, inaugurada em 2012; o Moquém do Banzeiro, aberto em 2016 com foco nos peixes amazônicos preparados na brasa; e, desde agosto deste ano, outro Banzeiro, o primeiro do grupo na maior cidade do país: São Paulo.
O curioso é que, até o começo da vida adulta, Felipe nem sonhava em ganhar a vida cozinhando: queria ser delegado de polícia. Na entrevista a seguir, o chef conta sobre a quase inesperada carreira, as particularidades da culinária manauara e a realidade de quem tem a gastronomia como profissão no Brasil.
Você é nascido em Maravilha, no Oeste do Estado. Como você foi parar em Manaus?
Meu pai tinha uma casa agropecuária em Santa Catarina, meu avó era agricultor. Mais tarde meu pai abriu uma loja, também de insumos para agropecuária, sempre tivemos essa conexão com a terra. Tenho um tio que tem fazendas no Mato Grosso, ele saiu de Maravilha em 1986, acho. Foi ele quem comprou terras em Porto Velho [capital de Rondônia] e convidou meu pai para entrar nessa. Em 1999, meu pai vendeu tudo o que tinha em Maravilha e foi se aventurar em Porto Velho. Eu e minha mãe fomos no ano seguinte, em 2000, para que eu pudesse terminar o ano letivo. Tínhamos uma fazenda bem grande lá, onde plantávamos soja. Mas não deu certo. Era uma área em que chovia muito, e nós quebramos. Nessa época, um amigo do meu tio viu a nossa situação e ofereceu uma vaga de emprego para o meu pai, em um porto graneleiro, exportador de soja, no interior do Amazonas. Então fomos todos morar em Itacoatiara, uma cidade a 270 quilômetros de Manaus.
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E como você começou a se envolver com o universo da gastronomia?
Essa época foi bem difícil para a minha família, tanto pela frustração por não ter conseguido dar certo em Porto Velho quanto pelo fato de que meus pais ganhavam superpouco. Aí minha mãe, que sempre teve um tino mais empreendedor, percebeu que as pessoas que iam para Itacoatiara não tinham muitas opções de onde sair para comer, e decidiu abrir uma pizzaria. Abrimos juntos, na verdade: ela, meu pai e eu. Na época eu tinha uns 16 anos, mas comecei a tocar a pizzaria: eu não trabalhava na cozinha ainda, mas fazia as compras, ajudava no atendimento, administração. Estudava de manhã e trabalhava à tarde e à noite. A pizzaria começou a ir superbem. Nós tínhamos algumas coisas que parecem muito básicas, mas que eram diferenciais para o interior do Amazonas em 2002: os garçons tinham uniforme, tínhamos cerveja no baldinho de gelo, pizza com borda recheada… Fiquei trabalhando nessa pizzaria até 2004, aí fui para Manaus para estudar. Em 2008, quando já estava me formando em Gastronomia, abrimos uma pizzaria em Manaus também, aí já passei a trabalhar na cozinha mesmo. Em 2010 vendemos a primeira pizzaria para focar só em Manaus.
Quando vocês decidiram abrir o Banzeiro?
Tinha um cliente que sempre ia na pizzaria e que vivia dizendo que achava que devíamos abrir outro restaurante, e esse cara tinha um ponto para vender. Então, em 2009, nós compramos o ponto dele e abrimos o Banzeiro, que funciona no mesmo lugar até hoje. Foi nesse restaurante que eu entrei mais ativamente e passei a trabalhar com a gastronomia regional. Meus pais e eu sempre trabalhamos bem juntos, com funções divididas: eles saíram da empresa onde trabalhavam, e cada um assumiu um aspecto do negócio. Fui eu quem deu o tom do tipo de cozinha que íamos seguir. No começo nem era uma coisa tão inovadora, digamos assim. Existiam muitas peixarias tradicionais em Manaus. Mas demos uma repaginada nisso, trabalhamos certas coisas com mais carinho. O ambiente já foi pensado com mais cuidado, tínhamos ar-condicionado… Parece uma coisa boba, mas ar-condicionado faz uma superdiferença no Amazonas [risos].

Você decidiu estudar gastronomia por causa da pizzaria?
Na época em que fui estudar gastronomia, já tínhamos o negócio. Mas, quando falei para os meus pais, eles não acharam exatamente incrível, assim. [risos] Passei a vida toda falando que queria ser delegado de polícia, e nunca tive dotes culinários, nada desse tipo. Vi um anúncio de jornal sobre um curso de gastronomia, e simplesmente decidi: "Quero fazer esse curso". E estou aqui até hoje. Tenho um padrinho que mora em SC, e há uns dois anos ele me disse que, na época em que decidi que queria fazer gastronomia, meu pai viajou a Maravilha e chegou falando: "Cara, você não vai acreditar. Agora meu filho decidiu que quer ser cozinheiro. Vê se pode". Não foi assim tão bem aceito quanto as pessoas imaginam. [risos] Acho que eles pensaram que ia ser só uma aventura. Mas foi uma aventura que deu certo.
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Por que o nome "Banzeiro"?
Nós já tínhamos o conceito da casa, que era uma casa de comida amazônica, e queríamos fugir um pouco do óbvio. Em Manaus existem, e existiam muitos restaurantes com nomes de peixes, ou inspirados em nomes de peixes. Então escolhemos a palavra "Banzeiro", que é o movimento do rio, seria algo como uma marola no mar. É ligado ao rio, aos alimentos que vêm do rio, mas sem falar diretamente do peixe, e ainda é um termo bem local, como queríamos.
Como o público reage aos ingredientes mais exóticos da culinária amazônica, como flores comestíveis, cogumelos ou até mesmo formigas?
No início, logo que abriu o restaurante, a gente pegava leve com esses ingredientes. Nós começamos a destacar esses elementos no cardápio depois que o Banzeiro já tinha conquistado algum espaço. Para as pessoas de Manaus, esses ingredientes são bastante naturais, exceto a formiga, que é uma coisa mais das tribos indígenas mesmo. E acho que quem é turista e viaja a Manaus está pronto para ter essa experiência gastronômica. Faz parte da viagem. Em São Paulo eu fiquei um pouco mais preocupado com essa aceitação. Então digo que o menu do restaurante de São Paulo ainda é uma aposta: já vi que acertei em alguns pratos, outros vou ter que mudar. Mas também acho que, se o cara está em São Paulo, com um bilhão de opções, e escolhe um restaurante amazônico, ele está tão a fim de ter essa experiência quanto o turista que vai a Manaus.
Você já consumia esses ingredientes? Como entrou em contato com eles?
A princípio esses ingredientes eram exóticos até para mim. Imagina. Cresci comendo “chimia” de uva com nata no pão de milho, salame, bolacha pintada. Minha memória afetiva de comida é essa. [risos] Muito do que aprendi aqui veio por meio do contato com pessoas que nem trabalham na área da gastronomia, pessoas simples, do povo mesmo. Comecei a ir para feiras, perguntar para os feirantes: "O que é isso? Como você produz isso? Do que isso é feito?". É a mesma coisa no Sul: se você for lá para o interior e perguntar para uma nona como eles fazem o salame em casa, na fazenda, você vai ter acesso a um universo muito mais rico e mais completo.
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Quais são os maiores desafios de quem trabalha com gastronomia?
Olha, hoje a minha maior dificuldade é encontrar mão de obra. E não é falta de mão de obra qualificada: o problema é a falta de compromisso das pessoas. Justamente o cara que é qualificado, que estudou, que tem uma boa visão de gastronomia, é o mais difícil de lidar. Ele vem trabalhar comigo, trabalha uns três, seis meses, e sai. O que ele quer é trabalhar com diferentes chefs, aprender com diferentes chefs, pensando que é isso que vai tornar ele um grande profissional. Mas para o restaurante isso é péssimo. A mão de obra mais básica é mais fiel, então ando apostando mais nessa turma. É uma turma que trabalha pesado e não me deixa na mão. Acontece às vezes de esse cara mais qualificado te deixar na mão em plena sexta-feira, com o restaurante lotado para o final de semana. É triste de ver. E o que pouca gente pensa é na quantidade de pessoas envolvidas para criar uma boa experiência para o cliente: do recepcionista ao chef, passando pelos garçons, pelos cozinheiros, pelo cara que faz os coquetéis. Se uma dessas pessoas falhar, a experiência do cliente pode ser comprometida. E às vezes isso nem tem a ver com a comida: aposto que você vai de novo em um restaurante que tem uma comida mais ou menos, mas um atendimento excelente, e que não volta em um lugar onde a comida é excelente, mas o atendimento é ruim. E encontrar e manter uma equipe que funcione direitinho é muito difícil.
Existe muita romantização a respeito da profissão de chef, até uma certa glamourização. Mas essa também é uma área que envolve muito trabalho pesado, até mesmo fisicamente.
Sim. A limpeza é industrial, os horários são bizarros – às vezes você trabalha até supertarde da noite e no dia seguinte, cedinho, já está de volta. Quando alguém chega e fala "eu amo cozinhar, quero abrir um restaurante", eu já acho que está errado. Amar cozinhar não é o suficiente para ser feliz em uma carreira na gastronomia. Comparo um pouco com a carreira de modelo. Você vê as modelos em fotos, lindas, maravilhosas, e não para pra pensar em quanto o trabalho delas é pesado, o quanto a vida delas é pesada. Você tem que entrar nessa para trabalhar muito, sabendo que um dia, quem sabe, pode ter um pouquinho dessa parte glamourosa, que mesmo sendo a menor parte do tempo, nem garantida é.
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A gastronomia também é um universo muito competitivo. Como você lida com isso?
Com certeza esse é outro elemento que é uma grande fonte de stress, de ansiedade. Em São Paulo tem de tudo, todo mundo compete muito. Você vê restaurantes lotados, mas também vê muitos restaurantes vazios. Sempre digo à minha equipe que, quando um cliente entra na nossa casa, a gente tem que praticamente agradecer a ele, que escolheu estar ali, mesmo com tantas opções disponíveis! É por isso que temos que estar atentos a absolutamente tudo: não posso ter talheres ultrapassados, um ambiente sem cuidados, uma comida desatualizada em relação ao mercado local. Em São Paulo tem muito isso de tendência, de modas gastronômicas que vão e vêm. Sabe, postei uma foto no meu Instagram pessoal, tomando água de coco com um canudinho de plástico, e aí umas três pessoas já me mandaram mensagens a respeito disso. Se eu colocar um canudinho de plástico no meu restaurante, a chance de eu ser massacrado é muito grande. [risos] Na internet é muito fácil você descer o pau nos outros e isso repercutir.
Dá para ganhar dinheiro com restaurante no Brasil?
A margem de lucro líquido de um restaurante hoje, no Brasil, está entre 10% e 12%, o que é mais que muitos outros negócios. Acho que existem profissões em que você ganha melhor, que você tem mais certeza de que vai ganhar bem. Ganhar bem no mundo da gastronomia é muito suado. Mas eu seria hipócrita se dissesse que não dá pra viver bem. Minha família vive bem melhor agora do que há alguns anos.

Você pretende abrir alguma coisa em Santa Catarina algum dia?
Adoraria. Imagina, é meu estado natal, tenho tantos amigos que moram aí! Mas tenho minhas dúvidas a respeito de o Banzeiro dar certo em Santa Catarina, especificamente. Não sei se os moradores teriam tanto interesse por esse tipo de comida. E o turista que vai para Santa Catarina quer comer comida catarinense, não comida amazônica. Acho que a chance de não dar certo seria muito grande. Mas claro que não é algo que descarto totalmente.
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Você morou em dois pontos quase extremos do Brasil, tão longe um do outro, como vê as diferenças – de clima, costumes, cultura – entre os dois lugares? Moramos no mesmo Brasil?
Olha… [risos] É bem difícil encontrar semelhanças. As diferenças são gritantes no sotaque, no comportamento, na alimentação, até na forma de ver a vida… Tudo é muito diferente. Claro que não tem um melhor ou um pior, um certo ou um errado. Mas de fato parece que são dois países diferentes. Acho que o clima influencia muito a forma de as pessoas se comportarem, sabe? O calor aqui marca muito o dia a dia das pessoas, os costumes delas, as formas de trabalho. É todo um mundo novo aqui. A Amazônia precisa ser vivida para ser compreendida. Não dá pra entender lendo em um livro, vendo fotos. Você tem que ir, visitar, mergulhar nesse universo.