Não faz muito tempo que os moradores do Beco do Caminho Curto, que fica às margens da Estrada Fazenda, em Pirabeiraba, ainda tinham medo de buscar seus direitos mesmo que fosse nas questões mais básicas, como saúde, saneamento básico e educação. A situação começou a mudar nos últimos dois anos e teve seu principal ponto de virada há cerca de um mês: em 10 de maio, a certificação federal que reconhece a origem quilombola da comunidade foi publicada no Diário Oficial da União. Ela foi emitida após um processo iniciado em 2013 pela Fundação Cultural Palmares e garante amparo legal às terras onde eles vivem e acesso a políticas públicas.
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Até a publicação da certificação federal, o Beco do Caminho Curto era visto como uma ocupação irregular e as 25 famílias que vivem ali passavam constantemente pelo constrangimento de serem questionados sobre a titularidade do terreno e por ofertas para deixarem o local para ingressarem em programas de habitação popular. O terreno de cerca de 25 metros por 60 metros quadrados é preenchido por pequenas construções de madeira e de alvenaria, a maioria com coberturas de telhado de zinco, e não há nenhum tipo de pavimentação no caminho que dá acesso às casas. Mesmo assim, ninguém cogitava trocar o local por qualquer outro.
— Nós provavelmente não iríamos morar juntos, do jeito que é hoje. Somos uma família e esse é o lugar onde nós nascemos — afirma a dona de casa Goreti Aparecida de Oliveira, 43 anos.
A história que Goreti conhece é que o avô dela fundou a comunidade ao lado dos irmãos, mas pesquisas mostraram que os antepassados dos moradores do Beco do Caminho Curto já viviam na região, mas do outro lado da Estrada Fazenda, quando boa parte daquela área ainda pertencia à São Francisco do Sul. Ali havia engenhos de açúcar onde era usado o trabalho de afro-brasileiros escravizados até o fim do século 19.
Terras por direito
Quando a escravidão foi proibida e os engenhos fecharam, muitas famílias de ex-escravos ficaram morando no mesmo local. A chegada dos imigrantes europeus e, mais tarde, a especulação imobiliária, levou à transposição da comunidade para outro terreno há pouco mais de 50 anos.
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— As pesquisas mostraram que esta família está na Estrada Fazenda pelo menos desde a época da colonização. A mão de obra de escravos chegava por São Francisco e levou à criação de quilombos em Joinville, Araquari e São Francisco do Sul, em regiões que ainda pertenciam à São Francisco — conta a professora Alessandra Bernardino, que atua como assistente técnica pedagógica na Gerência de Educação de Joinville.
Ela foi uma das militantes do Movimento Brasil Nagô que, em 2005, ajudaram a identificar a característica de remanescente de quilombola, por tratar-se de um grupo étnico-racial que mantém sua ligação baseado nas relações históricas e territoriais com o local onde viviam. A certificação federal foi possível a partir de um trabalho iniciado em 2007, depois que antropólogos e historiadores estudaram a comunidade.
— Até 2013 não houve nenhuma solução, até que a própria Fundação Palmares veio a Joinville para conhecer o Beco do Caminho Curto e as outras comunidades da região. Mas só no ano passado, com a campanha nacional Nenhum Quilombo a Menos, é que o processo de certificação finalmente foi movimentado, com a colaboração do defensor Célio Alexandre, que resgatou a história para dar brevidade na certificação — recorda ela.
O reconhecimento federal permitirá que seja realizado o pedido de titulação do território quilombola no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, com isso, garantir a posse do pequeno loteamento para as famílias. Depois, não haverá mais medo nem insegurança entre os moradores para solicitar os próprios direitos.
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16 comunidades em Santa Catarina
Atualmente, Santa Catarina tem 16 comunidades remanescentes de quilombos já reconhecidas federalmente. Na região Norte do Estado, além de Joinville, também há a comunidade Tapera, em São Francisco do Sul e a Comunidade Itapocu, em Araquari, onde há também a comunidade Areias Pequenas em processo de certificação. Em todo o Brasil, são 3.311 comunidades remanescentes quilombolas.
A certificação é prevista pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, mas foi só com o Decreto 4.887 de 2003 que ocorreu a regulamentação do procedimento para “identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”
Entenda o que são as comunidades remanescentes de quilombos
As comunidades remanescentes de quilombos são, geralmente, comunidades negras rurais constituídas pelos descendentes dos trabalhadores escravizados que, no processo de resistência à escravidão ou no fim do período em que ela era permitida por lei no Brasil, originaram grupos sociais que ocupam um território em comum e compartilham características culturais até os dias atuais.
Pesquisas históricas mostraram que a mão de obra escravizada era usada em São Francisco do Sul, que foi ocupada por fazendeiros portugueses a partir de 1658. Naquela época — e até o período da Colônia Dona Francisca em Joinville, fundada para abrigar imigrantes europeus em 1851 — parte do território de Joinville e Araquari pertencia à São Francisco do Sul. Além disso, no século 19 havia portugueses vivendo nestas terras que também mantinham trabalhadores escravizados e há pesquisas documentais que mostram que estes os alugavam para os europeus quando os imigrantes chegaram à Colônia.
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