Chegar às margens da Baía da Babitonga em São Francisco do Sul e olhar a cidade é observar uma parte importante da história brasileira. Do píer é possível enxergar um Centro Histórico que possui cerca de 400 itens registrados como patrimônio cultural do Brasil há mais de 30 anos.
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É um conjunto urbano que começou a ser construído em 1671 e que tem, atualmente, entre as ruas um número expressivo de casas destruídas ou inutilizadas, causando infestação de animais transmissores de doenças e a deterioração de um local que é cartão-postal da região Norte de Santa Catarina. Até agora, pelo menos 43 imóveis já foram identificados como abandonados.
Muitos casarios tiveram a parte interna demolida ou foram incendiados, em grande parte porque foram invadidos, tornaram-se pontos de uso de drogas e até esconderijo para produtos roubados. Há cerca de dois anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Secretaria de Infraestrutura da prefeitura de São Francisco do Sul começaram a realizar um trabalho mais intenso de fiscalização e notificação das propriedades que se encontram nessas condições.
Somente neste ano, no entanto, é que uma espécie de força-tarefa começou a ser empreendida por diferentes órgãos para garantir que este patrimônio não seja perdido.
— Cada órgão realizava a atividade de acordo com a sua responsabilidade, mas em ações independentes e sem muita comunicação, com muita lentidão. Então, decidimos uniformizar a linguagem e pensar em estratégias de ação — conta o coordenador de programas especiais da prefeitura, Ângelo Pereira Costa, à frente desse trabalho.
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Como a cidade foi fundada por bandeirantes paulistas em uma época em que a população brasileira não passava de 100 mil povoadores – a maioria no Nordeste do país – e por tribos indígenas, o Centro Histórico de São Francisco do Sul tem uma malha urbana semelhante à de cidades portuguesas, assim como boa parte das características arquitetônicas dos casarios e dos armazéns mais antigos.
Ela foi ocupada de acordo com as Cartas Régias do Império, que ditavam que as construções deveriam seguir as características morfológicas do terreno. Para muitos moradores, comerciantes e empresários, não é mais um lugar interessante para continuar ocupando, seja como moradia ou como local de trabalho.
Falta a ocupação de imóveis
A falta de uso é o principal problema para a conservação do patrimônio. Chefe substituto do escritório técnico do Iphan em São Francisco do Sul, Yuri Batalha compara a desocupação dos imóveis ao descuido com o corpo humano.
— Se uma doença não é tratada, pode levar a problemas que, a longo prazo, não terão recuperação. Se ninguém utiliza um imóvel, não enxerga os reparos que ele precisa, nem faz a manutenção, ele sofre danos que, para reparar, só reconstruindo — avalia Yuri.
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Entre as causas para a não ocupação dos prédios, uma das mais recorrentes é a de que os proprietários morreram e a casa tornou-se objeto de briga judicial. Por isso, não é mais usada como moradia mas também não pode ser vendida ou alugada. Em outros casos, não é nem possível encontrar os herdeiros – ainda que, misteriosamente, as taxas anuais de habitação continuem sendo pagas à prefeitura.
— Ao verificar o cadastro da propriedade, o nome que está lá é de alguém que morreu há 20, 25 anos. O que fazer, enviar correspondência para uma ruína? Então, temos que apurar para quem ficou o imóvel para, pelo menos inicialmente, atualizar esse cadastro — explica Ângelo.
Essas ações começaram a ser feitas na força-tarefa e até as redes sociais estão sendo utilizadas para localizar os responsáveis pelos imóveis. Como São Francisco do Sul é uma cidade pequena – a população estimada é de 50 mil pessoas –, o fato de os moradores mais antigos se conhecerem também é um auxílio nas buscas.
Mas como fazer os habitantes continuarem a ocupar a área é um desafio a ser assumido nos próximos anos. Recentemente, até órgãos públicos como agências do INSS, da Caixa Econômica Federal e dos Correios deixaram seus prédios para alugar outros imóveis na parte nova do centro da cidade.
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— O Centro Histórico não pode ser um “presépio”. É necessário ter serviços e atividades que dinamizem o local e façam as pessoas quererem permanecer nele — analisa Ângelo.
Fundo de crédito para ajudar
Entre 2005 e 2008, foram abertos quatro editais do Ministério da Cultura (MinC) para os interessados em assumir um financiamento sem juros para restaurar seu imóvel. Era uma linha de crédito que fazia parte do Programa Monumenta, que existiu de 2000 a 2012 com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o apoio da Unesco, e recuperou 15 propriedades do Centro Histórico de São Francisco do Sul, além de ter restaurado bens públicos da cidade.
— Foi uma época em que houve um “boom” de valorização, havia pessoas de fora da cidade interessadas em adquirir um imóvel aqui. No entanto, quando o programa acabou, não houve uma continuidade — lamenta Ângelo Pereira Costa, da prefeitura.
Como os proprietários que conquistaram empréstimos via Monumenta retornam o investimento – os prazos para pagamento eram de até 15 anos –, houve a criação de um fundo em todas as cidades brasileiras em que o programa foi realizado, chamado de Fundo de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (Funpatri).
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Em Ouro Preto (MG), por exemplo, esses recursos foram utilizados para restaurar uma igreja de 250 anos e o Teatro Municipal da cidade. Em São Francisco, nenhum reparo ocorreu com o dinheiro.
— Ele pode funcionar novamente como uma fonte de empréstimo sem juros para propriedades privadas. Ou, em algumas situações em que o proprietário provar que não tem condições e aquela é sua única moradia, não vejo problema em utilizar esses recursos mesmo sem retorno ao fundo — avalia Yuri Batalha, do Iphan.
Segundo a lei, o Funpatri precisa de um conselho gestor formado por representantes dos órgãos culturais municipais, estaduais e nacionais e pela sociedade civil. No momento, uma nova formação do conselho está sendo organizada, segundo a presidente da Fundação Cultural de São Francisco, Andrea de Oliveira.
A partir deste conselho serão tomadas as decisões sobre os locais que serão beneficiados com o fundo – o Mercado Municipal e o Cine Teatro já foram apontados como prioridades.
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Educação patrimonial como estímulo
Apesar do sucesso do Programa Monumenta quando foi executado, houve um empecilho para que mais propriedades fossem inscritas para ter uma linha de crédito para restauro: o desconhecimento dos proprietários. Ele ainda perdura quando se trata de discutir patrimônio.
— Começaram a espalhar que o Monumenta era uma forma de o governo se apropriar do imóvel, entre outros boatos. Então, por mais que houvesse suporte técnico e a parte documental fosse facilitada, a desconfiança fez com que muitos não quisessem participar — recorda Ângelo Costa.
Andrea de Oliveira afirma que a Fundação Cultural começou a dar oficinas de educação patrimonial aos professores da cidade para que eles pudessem trabalhar o conceito em aula, estimulando, principalmente, o sentimento de pertencimento nos mais jovens. Segundo ela, havia muitos adolescentes que nem mesmo circulavam no Centro Histórico.
Pela experiência do Iphan na cidade, o desconhecimento também leva os proprietários a acharem que haverá restrições demais nos imóveis tombados, mas Yuri afirma que o tombamento nacional é do conjunto arquitetônico e, por isso, vale especificamente para as fachadas dos prédios.
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— O Iphan exige manutenção mas não ignora os avanços tecnológicos. As casas não precisam ser mantidas exatamente como eram antigamente, desde que as fachadas sejam preservadas — avisa.