Um prédio icônico na região central de Blumenau abriga algo que há muito tempo deixou de ser segredo — apesar da discrição de alguns pacientes. No oitavo andar, uma clínica especializada em cirurgias trans recebe pessoas do Brasil e do exterior com condições de pagar milhares de reais para se tornar quem de fato são. A alta procura, inclusive de celebridades, colocou Santa Catarina em evidência mundial. A história das irmãs gêmeas que fizeram redesignação sexual na unidade, por exemplo, virou série na HBO: “Gêmeas Trans: Uma Nova Vida”.
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Mas na contramão da celeridade e do amparo encontrado na rede particular, quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta os desafios de um atendimento lento e que ainda está engatinhando quando o assunto é paciente trans. Atualmente, apenas duas das 295 cidades catarinenses têm ambulatórios trans. E a rede pública do Estado não tem hospitais credenciados para as cirurgias do chamado processo transexualizador, como é o caso da redesignação sexual — popularmente conhecida como mudança de sexo —, da mastectomia masculinizadora — retirada de mama para transformar em tórax masculino — e da redução do pomo de Adão.
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Isso significa que o governo de SC precisa encontrar um hospital em um dos sete estados brasileiros com unidades habilitadas pelo Ministério da Saúde. O resultado da baixa quantidade de prestadores do serviço no Brasil se reflete em longas filas de espera. Dados da Secretaria de Estado da Saúde apontam 120 pessoas de todas as regiões catarinenses aguardando, sem previsão, pelos procedimentos no SUS, porque dependem de a secretaria conseguir vagas fora de SC, o que a pasta diz estar tentando fazer.
No fim de março, o Ministério Público instaurou um inquérito civil para “apurar eventual omissão” do governo de Santa Catarina. No documento, a promotora Isabela Ramos Philippi deu 15 dias para a Secretaria de Estado da Saúde explicar o que está ocorrendo. A Defensoria Pública também abriu um procedimento em tutela coletiva cobrando esclarecimentos sobre quais medidas efetivamente têm sido tomadas para solucionar o problema de forma definitiva, considerando se tratar de um direito garantido à população trans.
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— O Estado de Santa Catarina tem a obrigação, o dever, de prestar o acesso à saúde dessas pessoas, a promover o processo transexualizador e ainda não o faz — afirma a defensora pública Ana Paula Berlatto Fão Fischer.
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A agonia da espera
Embora as cirurgias de modificação corporal estejam incluídas na lista do Sistema Único de Saúde há mais de uma década, Mariana*, de Blumenau, sabia que o caminho seria longo e árduo. Ela o enfrenta com a garra de quem já passou por muitos desafios na vida e sabe que esse é mais um a ser superado. Perdeu a mãe aos 19 anos, ficou responsável por criar o irmão caçula. Só aos 32 anos pôde se colocar como prioridade e procurou ajuda para começar a transição de gênero.
Ela afirma ter consciência de que estava no corpo errado desde a infância, pois nunca se identificou como homem. Quando deu o primeiro passo para se encontrar, esbarrou na desinformação.
— Pesquisei muito sobre quais direitos eu teria pelo SUS, porque sabemos que é uma cirurgia cara na rede privada e eu não tenho como pagar. Quando cheguei ao posto de saúde para saber com quem falava, qual o primeiro passo, ninguém sabia indicar. Até que uma enfermeira, um anjo, disse ter ouvido falar de uma pessoa que já tinha feito o procedimento na rede pública e poderia me ajudar. E essa segunda mulher me orientou — recorda Mariana.
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Do primeiro dia que cruzou a porta do posto de saúde em busca da cirurgia de redesignação sexual até hoje, já se passaram quatro anos. A legislação exige ao menos dois anos de acompanhamento multidisciplinar antes de qualquer uma das cirurgias transexualizadoras. Essa cobrança não ocorre na rede privada, o que dá celeridade ao processo àqueles com condições de pagar. Por duas vezes Mariana ficou a um triz de realizar o sonho, quando foi informada pelo governo de Santa Catarina que haviam conseguido marcar a cirurgia. Primeiro no Rio de Janeiro e depois em Goiás. Nas duas vezes, no entanto, houve cancelamento.
No fim do ano passado, o Estado voltou a fazer contato para perguntar se ela ainda tinha interesse em ficar esperando.
— Se não fosse algo tão importante para mim, por que eu ia entrar na fila, correr atrás, ter toda aquela dor de cabeça por causa da burocracia tremenda? Quando eu iniciei minha transição, eu estava consciente de que essa pessoa sou eu. Se não, não teria iniciado — desabafa.
As angústias de Mariana são as mesmas que ecoam diariamente na cabeça de Beatrice Rodrigues Fogolari. Criada em uma família religiosa de Blumenau, ela precisou superar primeiro o estigma de que ser transexual é errado. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de doenças mentais e passou a tratá-la como incongruência de gênero — quando o gênero vivenciado de um indivíduo é diferente do sexo atribuído.
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Aos 18 anos, Beatrice começou a terapia hormonal por conta própria, até que uma professora a levou a uma psicóloga, onde recebeu encaminhamento para um endocrinologista. Hoje ela recebe acompanhamento pelo SUS, ainda que com percalços, enquanto espera pela cirurgia genital.
— Não foi nada em linha reta, tipo: “Vou ao médico, ele me encaminha para o endócrino e psicóloga. Foi tudo sinuoso, porque Blumenau não tem um centro que cuide de pessoas trans. Fui atendida por dois meses no Serviço de Avaliação em Saúde Mental até me transferirem para o Caps, onde passei cerca de quatro meses em consulta com psicóloga e psiquiatra, até falarem que não iriam mais me atender porque eu não tinha nenhum problema que é tratado por eles. Assim, fiquei meio que à deriva, porém uma psicóloga do Cedap aceitou pegar o meu caso. Depois de um ano de consulta com a endócrino e dois com a psicóloga solicitei o encaminhamento à cirurgia de redesignação sexual e deram entrada no processo. Isso já faz dois anos.
Parecia ser mais uma etapa vencida, até uma surpresa desagradável se revelar. No fim de março, ao dar entrevista para esta reportagem, ela acreditava estar na fila do SUS, pois tinha ligado para o setor de tratamento fora do domicílio para se informar e ouviu que “nenhum médico tinha pegado o caso ainda”, mas que seguia na lista. O nome dela aparece, inclusive, em uma relação obtida pela reportagem da NSC. Mas em uma visita pessoalmente à Secretaria de Saúde, a informação recebida foi diferente. O documento entregue a Beatrice mostra que o pedido para a cirurgia ocorreu em janeiro de 2022 e foi negado no mês seguinte, com a justificativa: “Sem prestador de serviço”.
Falta de hospitais credenciados cria gargalo para cirurgias trans e reflete na demora em SC
Consta, ainda, que ela fez contato em setembro daquele ano perguntando sobre o processo, mas Beatrice garante que nunca soube da negativa. A recomendação que ouviu ali foi voltar ao posto de saúde para fazer um novo pedido ou procurar a Defensoria Pública para buscar uma solução na Justiça.
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— É uma indignação bem grande você estar há dois anos esperando uma coisa que foi negada no segundo mês — lamenta.
Os obstáculos enfrentados por Mariana e Beatrice as fazem ser unânimes no desejo por um atendimento especializado na rede pública de saúde para pessoas trans. Na avaliação delas, isso poderia evitar problemas como serem chamadas pelo nome morto — o anterior à mudança no registro —, mesmo tendo o direito legal de serem chamadas pelo nome social antes da troca em cartório, ou até mesmo por médicos que dizem não atender pacientes trans.
Questionada se planeja criar um serviço especializado ou quais diretrizes dá aos postos de saúde sobre o tema, a prefeitura de Blumenau não se manifestou.
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