É comum atrelar o adjetivo “velado” ao se falar sobre racismo, como se fosse mesmo um comportamento sutil. A verdade é que passados 129 anos da abolição da escravidão no Brasil — país que teve o maior sistema escravocrata do mundo — o preconceito ainda é vigente. No livro A “tradução” de Lombroso na Obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da Criminologia Brasileira (Editora Revan), o catarinense Luciano Goes investiga a origem da discriminação e as razões pelas quais os negros são maioria nos presídios brasileiros.

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O livro do advogado e professor da Estácio Santa Catarina ficou em segundo lugar no 59º Prêmio Jabuti, tradicional e principal disputa literária do país. Ainda que tenha sido contemplado na categoria Direito, trata-se de uma obra de leitura fundamental para qualquer pessoa. Mostra como o racismo nasceu enquanto manifestação violenta a partir da análise da obra do italiano Cesare Lombroso (1835 – 1909), autor da teoria do delinquente nato e cujos estudos são a base para o estudo do Direito Penal em todo o mundo.

Essa teoria foi interpretada no Brasil pelo médico legista e antropologo Raimundo Nina Rodrigues (1862 – 1906), que considerava o negro como o principal problema para o progresso do Brasil. Como resultado dessa “tradução”, temos um dos maiores legados criminológicos, o estereótipo do perigoso, visceralmente vinculado ao fenótipo negro.

Durante a pesquisa, Goes descobriu que Florianópolis chegou a ter dois portos ilegais para desembarque de escravos (em 1850 o comércio de africanos foi proibido): um na ilha do Campeche e outro na Praia da Armação.

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Leia trechos da entrevista:

Racismo estrutural

Apesar de ser estrutural, o racismo nunca foi pautado enquanto política pública. A solução que o Brasil encontrou no pós-abolição foi a negação. A ocultação do racismo e de todas as violências que advém dele. Isso deu lugar a um mito, à ilusão da democracia racial. Somente quem traz a negritude na pele é que sofre a violência cotidiana. O Direito Penal mostra que não somos iguais.

Quatro séculos de escravidão

Fomos o maior sistema escravocrata do mundo. E acabou da noite para o dia. Com um mero instrumento legal, sem preparação e sem política pública. Simplesmente se deu a “liberdade” de ser expulso da senzala. Desde então, não se teve mais a necessidade de confrontar o racismo. Como se tivesse ficado para trás com a falsa abolição. Mas não. Toda a estrutura e violência racial foram e continuam sendo mantidas.

Quem foi Lombroso

Lombroso é uma figura primordial nos cursos de direito. A ideia principal que ganhou o mundo é a de que existem pessoas que nascem predispostas a cometer crimes, o criminoso nato. Como uma herança ancestral. Esse criminoso é o “primitivo”, o não civilizado. Ele forjou um estereótipo do perigoso. Esse conceito ainda está no Código Penal brasileiro e fundamenta muitas sentenças. Está lá no artigo 59. Se analisarmos as sentenças, principalmente as relacionadas ao tráfico de drogas, estarão lá: a periculosidade do agente.

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A versão brasileira do delinquente nato

O estereótipo do criminoso de Lombroso foi traduzido no Brasil por Nina Rodrigues no final do século 19 e com outra cor, a do mestiço ou do negro. Negros eram considerados próximos dos primatas, sem a capacidade intelectual dos brancos, e por isso mereciam tratamento diferenciado. Para Nina Rodrigues, era errado manter a igualdade. O médico chegou até a sugerir a criação de quatro códigos penais, relacionados à raça, clima e região.

Direito Penal seletivo

Na transição entre o período escravocrata e uma república racista, temos a divisão do Direito Penal — o declarado, que está ainda hoje, e um paralelo, que é o que a polícia faz e está além da lei. A polícia pode fazer qualquer coisa com o corpo negro. As práticas punitivas antes eram feitas pelos senhores, depois da abolição essa ideia ganha as ruas e a polícia vai atrás dos negros nos locais públicos. E aí todos os ajuntamentos são proibidos. Capoeira, samba. A vadiagem foi criminalizada. Quem era o vadio? Aquele que não tinha trabalho. O ex-escravo tinha trabalho? Não. Não tinha a menor condição se ser absorvido pelo mercado.

Terceira maior população carcerária

Hoje o Brasil é a terceira maior população carcerária do mundo e 70% são negros. Temos uma seletividade racial explícita. Encarceramento em massa, que começou lá em 1890, quando as punições já não podiam ser feitas e a pena de prisão passou a ser a única solução. Antes podia ser chibatada.

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Genocídio segue na atualidade

O que temos hoje é reflexo do passado. O encarceramento começou no pós-abolição e não parou. Temos o Direito Penal paralelo e o que vige é a pena de morte. Essa pena de morte não se encontra nas áreas nobres. É sempre na periferia, no morro. A nossa última legitimação sobre isso é a guerra contra as drogas. Quem é o perigoso, quem é o inimigo? É o traficante. Quem é o traficante? Um jovem negro. Em toda e qualquer esquina tem um traficante. Pode ser morto? Claro. É perigoso… Então se de um lado temos um encarceramento em massa, no Direito Penal paralelo temos um genocídio. Em toda a nossa história o genocídio esteve presente. Na Guerra do Paraguai, por exemplo, tivemos uma redução grande da população negra do Brasil, que foi usada como bucha de canhão. E hoje é a guerra contra as drogas. Temos a policia que mais mata no mundo. E também a que mais morre. Quem é que mata e morre? É o homem negro. Dos dois lados. Nesse sentido, a ideia de Lombroso, apesar de secular, ainda é funcional.

Identidade negra

A identidade negra no Brasil é muito importante. É resultado da resistência secular de um movimento num sentido amplo. No Brasil, é uma questão fundamental enquanto um movimento coletivo. E quando fala em povo, temos outros problemas. Porque temos vários povos misturados num só. Nossa identidade é fragmentada em muitas questões. Porque o negro no Brasil não sabe de onde veio. Não tinha registro. Veio da África, mas a África é um continente. Os únicos registros são as certidões de nascimento e o sobrenome é o do dono dos escravos. Cruz e Sousa também foi assim.