Santa Catarina tem pela primeira vez uma mulher como embaixadora do Brasil em outros países. Natural de Florianópolis e filha de Sara e Alcides Abreu, Marcia Donner Abreu, 57 anos, começa oficialmente a atuar no Cazaquistão, na Ásia Central, em 24 de julho. Além de comandar a embaixada no país, responderá, cumulativamente, pelas funções diplomáticas brasileiras nos vizinhos Turcomenistão e no Quirguistão.
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Formada em Direito no Rio de Janeiro, Marcia está há 30 anos no Itamaraty. Dentre outras funções, passou por trabalhos na China, Japão e França. Mais recentemente era representante na Delegação Permanente do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, na Suíça, desde 2012.
Também foi delegada permanente adjunta na Delegação Permanente do Brasil junto à Unesco e serviu nas embaixadas do Brasil em Washington, Montevidéu e Pequim. Enquanto esteve em terras brasileiras, trabalhou nas divisões de Negociações Extra-Regionais do Mercosul II, de Serviços e Temas Financeiros, de Meio ambiente, das Nações Unidas e na Assessoria Parlamentar.
Antes de embarcar para a Europa, a catarinense conversou com a reportagem do DC e revelou que a ida para o país asiático foi uma escolha pessoal. Além disso, falou sobre as potencialidades do Brasil e do Cazaquistão para futuros acordos de cooperação. Leia abaixo:
Chegar ao cargo de embaixadora é o auge de um trabalho construído durante anos?
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Isso é inegável. Chego a essa posição, de apresentar credenciais diante de um governo estrangeiro para ser o representante do seu país, em outro, é uma situação que só pode honrar quem conseguiu chegar até ali. É muito trabalho para trás e muita oportunidade para frente. Porque o embaixador de um país vai, claro que trabalhando sempre com a secretaria de Estado de Relações Exteriores, ter certa liberdade de propor uma agenda de interesse do Brasil para aumentar a densidade da relação com aquele país em várias áreas como a econômica, cooperativa e cultural. O embaixador hoje é percebido, sobretudo, como um vendedor das potencialidades brasileiras, tanto como do que se pode exportar como do que podemos atrair de investimentos. E, evidentemente, numa área do mundo como o Cazaquistão, que é um espaço ainda a desbravar pelo Brasil já que temos embaixada lá só há 12 anos, meu desafio é construir sobre essa base. Estou muito entusiasmada com esse posto.
Foi um pedido seu ir para o Cazaquistão?
Exatamente. Esse é um longo processo. As pessoas me perguntam se o Itamaraty obriga a gente a ir trabalhar em algum determinado lugar. Não, eles não obrigam, mas oferecem opções. A pessoa tem direito a não querer nenhuma dessas possibilidades, mas a pessoa terá que voltar à base em Brasília, trabalhar um tempo lá e depois postular servir num posto determinado. Lógico, é sempre uma competição. A minha ida para o Cazaquistão dependia também de que o embaixador que estava no país manifestar o desejo de servir em outro posto, ou terminar o tempo dele ou desejar voltar ao Brasil. E, no fundo, aconteceu isso. Ele pediu para retornar e me ajudou demais nas minhas futuras responsabilidades. Então me sinto, plenamente, contente porque estou indo para onde eu quis. Um lugar que tem muita energia, que está crescendo muito, se desenvolvendo. Vejo um bom potencial para o Brasil, onde vou ter gente entusiasmada em servir lá com afinidades pela região da Ásia e Eurásia. Tenho certeza de que vou adorar.
Como a senhora se sente sendo a primeira catarinense a chegar no posto de embaixadora?
Para mim, isso é menos. O sentimento é de muita alegria de ter chegado ao posto mais graduado da minha carreira, espero que isso possa entusiasmar muitos jovens catarinenses a se interessar pelo Itamaraty, a fazer esse concurso. Há muitos anos, o Instituto Rio Branco tem uma política de diversificar as bases de recrutamento. Antigamente, o diplomata vinha basicamente de quatro lugares do Brasil: Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e, mais recentemente, de São Paulo. Há uns 15 anos atrás, veio uma preocupação de ter gente de mais Estados. Mas sei que o desejo do Itamaraty é aumentar a tentacularidade da divulgação nos diferentes Estados e universidades. Para mim será fantástico que eu estimule outras moças catarinenses a prestarem o concurso. Não é uma carreira impossível para a mulher. Essa aventura do exterior é muito interessante para enriquecimento pessoal.
Essa conquista atinge um sonho pessoal e familiar?
Acredito que ninguém comece uma carreira pensando que quer parar na metade. Mas, com certeza, a minha mãe está muito orgulhosa, anda com notícias do jornal, conversa com todo mundo. Meu pai é falecido há alguns anos, mas tenho certeza que ele viu minha sabatina (no Senado) e está acompanhando. E agora, quando estive em Florianópolis, fui até o cemitério levar umas flores para ele e agradecer muito porque talvez sem o estímulo dele, e esse desejo de ter uma diplomata na família, eu não teria me aplicado tanto e feito às coisas que fiz logo que terminei a faculdade. É um investimento considerável. Agradeço muito a ele e a minha mãe, que sempre me estimulou e me socorreu.
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Por que a vontade de ir para o Cazaquistão?
Basicamente por uma razão, o Cazaquistão estava negociando sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC) desde 1996, mas num certo momento eles fizeram uma união aduaneira com a Rússia e o Belarus. Com isso, o processo ficou um pouco mais complexo. O Cazaquistão acabou entrando na OMC em 2015. Peguei a etapa final dessa entrada, de 2013 e 2015, e a primeira coisa que me chamou a atenção é que toda a equipe negociadora, desde a ministra de Integração Econômica para baixo, só tinha mulheres. Então comecei a me interessar pelo país em si. Servi na China e saí desses anos lá com aquele sentimento da energia da Ásia. A região tem realmente uma energia de possibilidades que é extraordinária para um diplomata. Há também as circunstâncias. Eu não estava em Brasília. Para você disputar uma promoção e uma remoção para um posto mais perto é diferente. Tem que estar no Brasil, é uma questão mais política. O Cazaquistão não era um posto fácil, havia outros interessados, mas eu tinha que fazer valer esse meu grande interesse prévio e conhecimento da economia e do comércio cazaque.
O embaixador do Cazaquistão esteve em Santa Catarina em 2014 e um dos assuntos que se debateu foi o interesse do Estado em vender aves para o país da Eurásia. A senhora acha que pode auxiliar para que essas novas parcerias ocorram?
Auxiliar, com certeza. Almocei recentemente com o embaixador do Cazaquistão e foi a primeira pergunta que fiz a ele. Lembrei que sou de um Estado produtor de frango e perguntei se eles têm o hábito de consumir a ave. Porque sei que eles comem muita carne de carneiro e boi. Mas acho perfeitamente possível que a gente consiga, sobretudo porque a gente já vende para a Rússia. O Cazaquistão é parte, com a Rússia, dessa união econômica euroasiática. É um país mediterrâneo, que não tem acesso ao mar. Qualquer produto brasileiro que vá chegar lá tem que atravessar algum espaço de terra. O mais óbvio para mim é que entre pelo porto da Rússia. Então eu imagino que há possibilidade. Uma coisa que sei que os cazaques compram muito do Brasil é o açúcar. Mas a gente vai buscar levar missões empresariais ao Cazaquistão, Turcomenistão e Quirguistão, onde vamos buscar levar nossos produtos. Uma coisa que temos a intenção de fazer é um diálogo econômico entre a união euroasiática e o Mercosul porque isso abriria muito mais possibilidades para, futuramente, ter um acordo mesmo de livre comércio. Já existe um interesse de países de lá e um interesse do Mercosul.
Em sua sabatina no Senado, a senhora fala no interesse em fortalecer também as relações do Cazaquistão com o Brasil na área tecnológica, algo que Santa Catarina também é bastante forte.
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Sim. O Cazaquistão hoje está com uma agenda muito forte de conectividade e de tudo que é digitalização. O Brasil está avançadíssimo nisso. Aqui em Florianópolis é fantástico. Essa é uma área que poderemos trabalhar com eles. A perspectiva real vamos ver ao chegar lá. O interesse ele existe e, na verdade o Brasil já vende produtos de alta tecnologia para o Cazaquistão. A gente vende avião, por exemplo. Agora, uma coisa é estar chegando lá e outra é chegar e ficar diante da realidade. O Cazaquistão tem muito interesse em se exteriorizar e o Brasil também tem. Não se trata de só ir vender coisas, mas também de atrair investimentos.
O que esses três países podem nos atrair?
O Cazaquistão, por exemplo, tem um centro espacial. Nós temos muita pesquisa na área da agricultura altamente qualificada, a Embrapa é uma potência mundial. O Cazaquistão tem uma preocupação ambiental muito forte e eles querem desenvolver cultivos e cultura que consumam pouca água. Essa é uma área que a Embrapa já desenvolveu várias espécies adaptadas à seca. O território cazaque também tem muita mineração, e é uma área que o Brasil tem interesse em receber cooperação. A potencialidade é grande, é um país que está desabrochando e tem 26 anos. Antes disso, era um país de pastores nômades, próspero e rico. E, lógico, as oportunidades vão surgir.
O que a senhora leva de Santa Catarina na sua jornada como embaixadora?
Santa Catarina é um Estado muito avançado, o melhor IDH do Brasil, um dos maiores exportadores per capita do Brasil, uma economia diversificada. O que levo daqui é o melhor do Brasil. Somado a uma excelente qualidade de vida. Sou de família daqui. Meu pai é de Bom Retiro, minha mãe de Laguna, ambos estudaram na capital. O melhor que tem no Brasil está em Santa Catarina.
Como é o seu estilo de trabalho e o que a senhora pretende implantar na nova função?
A minha carreira foi longa, demorei a chegar no topo por questões pessoais, tenho uma filha e fiquei mais tempo no exterior do que a média das pessoas que ficam no exterior. Achava mais fácil para ela ter uma experiência diversificada. Então aprendi, nos últimos anos, como lidar com as pessoas numa posição de chefia. Uma coisa muito importante é você saber motivar e interessar as pessoas. Quando eu era chefe de divisão na área de negociações internacionais do Mercosul, eu tentava estimular as pessoas que trabalhavam comigo a escrever, pensar. Gosto de estar muito atualizada, gasto muito tempo para ler, acordo muito cedo e da cama leio alguns jornais brasileiros e internacionais. Depois, no trabalho, leio todos os e-mails. E ainda recebo pessoas e comunicações oficiais de Brasília. E com base nisso, determino tarefas, recebo produção, corrijo, troco muita ideia, converso muito.
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O CAZAQUISTÃO
Nome Oficial: República do Cazaquistão
Área: 2.724.900 km²
Capital: Astana
População: 18,2 milhões de habitantes (2017)
Nacionalidade: cazaque
Língua: Cazaque (oficial) e russo
Governo: República Presidencialista
Divisão administrativa: 14 regiões e as cidades de Almaty e Astana
Moeda: Tenge
Fonte: Senado Federal