Em 2008, o bailarino Arthur Fernando de Souza, 38 anos, de Florianópolis, embarcou naquilo que lhe parecia uma excelente experiência profissional: trabalhar durante um ano em um navio de uma empresa asiática que fazia cruzeiros por diversos países do mundo.

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Segundo ele, porém, em poucos meses a experiência se revelou frustrante e enganosa, com tripulantes vivendo em condições de semiescravidão e sendo alvo de assédio moral por parte dos superiores. Além disso, de acordo com Arthur, os shows que deveriam ser musicais ao estilo Broadway eram na verdade apresentações de caráter erótico.

Nesta segunda-feira, Arthur e outras vítimas de crimes ocorridos em navios de cruzeiros estarão em Brasília para participar de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal para debater o tema “Sistema Degradante dos Passageiros e Tripulantes de Navios de Bandeira Nacional e Estrangeira”.

Na audiência, o grupo liderado por Alexandre Frasson – pai da nutricionista Bruna Frasson, detida há 18 meses na Espanha por tráfico de drogas e condenada no dia 27 a seis anos e um dia de prisão – irá apresentar vídeos, cartas, depoimentos e outros materiais para colaborar com a aprovação leis específicas para o assunto, hoje inexistentes.

A audiência será transmitida ao vivo pelo Portal E-cidadania a partir das 10h de segunda-feira. Confira entrevista com o bailarino Arthur Fernando de Souza.

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DC – Qual o objetivo desta audiência no senado?

Souza – Estamos tentando aprovar um projeto lá em Brasília. Eu e outras três pessoas vamos expor nossa vivência e apresentar as provas. Estou engajado nesta luta de conscientização. Quero divulgar o máximo possível para as pessoas saberem do risco que é trabalhar lá fora.

Se o navio não é brasileiro ou não está na costa brasileira, não existe nada, nenhuma legislação que proteja. O que vai ser discutido lá também é que essa questão se estende aos passageiros, porque crimes são cometidos. O pai de uma garota que foi estuprada em um navio criou a primeira ONG mundial das vitimas de cruzeiros marítimos.

DC – Por que você decidiu trabalhar em um navio?

Souza – Existe uma rede de agências no Brasil que estão se especializando nisso, em mandar trabalhadores para esses cruzeiros. No meu caso na época teve uma agenciadora de São Paulo que esteve em Florianópolis e fez algumas audições. A propaganda que eles fazem é muito boa, é pra trabalhar viajando, conhecendo o mundo e aprendendo novas línguas. Falam também que a carga horária de horário é reduzida. O outro apelo é o salário, que realmente é bom. O que eu ganhava como bailarino lá não me pagam de jeito nenhum aqui.

DC – Você foi contratado para fazer que tipo de trabalho?

Souza – Fui contratado como bailarino para fazer shows estilo Broadway. Nosso contrato era brasileiro, dizia que regido pela legislação brasileira, e previa cinco horas de trabalho diárias, um dia de folga por semana, aquela maravilha toda. Chegando lá os shows eram topless com simulação erótica, eram shows eróticos. E o trabalho era escravo, 24 horas por dia, dia de folga, Quem se revoltasse sofria assédio moral. Tinha todas as características de trabalho escravo.

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DC – Quando você percebeu isso, o que fez?

Souza – Enquanto eu estava a bordo mandei e-mails para a agenciadora. Eles passaram dois meses enrolando, dizendo que iam mandar as reclamações para o escritório central. Depois disso, se você insiste, eles partem para o assédio moral. No início nós éramos em 10 protestando por nossos direitos. Depois de uns seis meses, só estávamos eu e uma menina reclamando.

São agressões verbais e ameaças de demissão o tempo todo. Ofensas, humilhação, perseguição, o tempo todo levando bronca e sendo chamado na direção. Isso para quem continua a se opor ao sistema, que era o meu caso. Eu batia o pé.

DC – Além do que ocorreu com você, chegou a presenciar outros tipos de abusos?

Souza – Os tripulantes de navios, mesmo os mais luxuosos que você imaginar, vivem literalmente num submundo. Porque quem olha de fora vê só os andares do navio que estão acima do nível do mar, mas abaixo disso existem ainda três ou quatro andares, que é onde a tripulação vive. Ali as acomodações são um lixo, a comida deles é um lixo. Na minha época não sofremos tanto porque os bailarinos especificamente podiam comer nos restaurantes dos passageiros.

Não era possível desistir do trabalho?

Souza – Nosso contrato previa uma série de multas por desistência do serviço. No geral, somando tudo eu teria que pagar uns 10 mil dólares. Além das multas por rescisão, eu teria que pagar a minha passagem de volta, a passagem do novo bailarino, despesas com agenciamento do novo bailarino, hospedagem dele etc.

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A minha estratégia foi kami kaze. Chegou uma hora, depois de seis meses, que eu decidi fazer só o que estava no contrato, cumprindo o que estava previsto mas me negando a fazer o que estivesse fora. Fiquei quase em vias de ser agredido fisicamente. No final de oito meses recebi um e-mail dizendo que eu havia sido demitido por motivos disciplinares e falta de espírito de equipe. Me deram a passagem e fui embora.

DC – Que medidas judiciais você tomou ao voltar o Brasil?

Souza – Assim que voltei, entrei com ação trabalhista por danos morais contra a agenciadora de São Paulo e contra a empresa, mas perdi essa causa por causa da súmula 207 do TST (a súmula, que versava sobre conflitos de leis trabalhistas entre países, foi cancelada em 2012).

Esse meu caso atualmente está sendo objeto de inquérito da PF. Fiz denúncia pro MP federal que requisitou instauração de inquérito. Espero que com o inquérito surja uma punição contra a agenciadora. Tá um oba-oba muito grande, surgindo um monte de mercado e não existe punição nenhuma.