Casos recentes de racismo registrados em Santa Catarina expõem o problema do preconceito e os desafios ainda existentes para coibir essas manifestações, que já são consideradas crimes, entre a população.

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O episódio mais recente ocorreu com o motorista de aplicativo Francisco Santos Cá, 34 anos. Ele chegava para o que deveria ser mais uma corrida quando foi alvo de ofensas racistas. O fato ocorreu na terça-feira (7), no bairro Kobrasol, em São José, na Grande Florianópolis.

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Ao estacionar em frente a uma lavação de carros para encontrar a passageira, Francisco viu um homem se dirigir até ele e mandá-lo sair do local, segundo ele em tom agressivo. Francisco seguiu com o carro alguns metros adiante para esperar a passageira, que já fazia sinal com a mão, quando o homem que estava no estabelecimento voltou a se dirigir a ele, desta vez com ofensas.

– Ele voltou e disse: tu tá aqui ainda? Vaza daqui, macaco. O que eu fiz para esse senhor estar me chamando de macaco? Eu fiquei com muita raiva e desci do carro. Ele me viu descendo e entrou no estacionamento. Ele continuou me xingando. Repetiu mais de quatro vezes a palavra macaco, disse “se tu não sair daqui vou te quebrar” – conta.

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Francisco chamou a polícia, que foi até o local em poucos minutos, mas o suspeito não foi localizado porque deixou o estabelecimento antes de os policiais chegarem. Um inquérito por injúria racial e ameaça foi aberto na 3ª Delegacia de Polícia de São José e tem prazo de 30 dias para conclusão. Francisco prestou depoimento esta semana. Em entrevista à NSC TV, o advogado Frederico Goedert Gebauer, que representa o suspeito, disse que houve agressões verbais entre as duas partes, mas nenhuma de cunho racista.

O caso de Francisco, que veio à tona após ele divulgar um vídeo explicando o episódio na internet, está longe de ser o único. De janeiro a junho deste ano, 61 pessoas denunciaram casos de injúria racial em Santa Catarina, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-SC). O número é menor do que as 94 denúncias feitas no mesmo período de 2019, mas ainda assim mostra o quanto esse tipo de crime ainda é recorrente no Estado.

Em junho, uma transmissão on-line de um evento do Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (Icom) foi interrompida com um ataque virtual em que foram exibidos vídeos obscenos e uma suástica. No mesmo mês, o Conselho Estadual das Populações Afrodescendentes (Cepa) relatou ter recebido denúncia de quatro casos de racismo ocorridos em SC.

Junho foi também o mês em que se acentuaram os protestos contra o racismo motivados pela morte do segurança George Floyd, nos Estados Unidos, morto por asfixia durante uma abordagem policial. As manifestações pararam o país, se espalharam pelo mundo e voltaram a estimular um debate sobre o combate ao preconceito e à opressão contra o povo negro. Atos contra o racismo também ocorreram no último mês em Florianópolis.

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Episódio revela cultura racista praticada em SC, diz liderança

O presidente do Conselho Estadual das Populações Afrodescendentes (Cepa), Márcio de Souza, diz que o caso de Francisco representa o racismo cultural já intuído em uma parcela da sociedade, que estabelece uma condição inferior ao negro como herança da cultura escravocrata.

– O episódio desta semana é mais um que revela a disseminação da cultura racista praticada em qualquer esquina de Santa Catarina. Muitos negros se sentem pouco à vontade para dar curso às denúncias porque inclusive ficam com medo de ser vítima do reverso, de perseguição do próprio autor do crime. Há uma sensação de impunidade – avalia.

A militante do Movimento Negro Unificado de Santa Catarina, Vanda Gomes Pinedo, diz que o episódio mostra a atitude de pessoas que se sentem respaldadas pela estrutura nacional e pela direção atual do país. Segundo ela, a população precisa perceber que o racismo é um problema que afeta todos.

– Essas atitudes não são prejudiciais apenas à população negra, mas a toda estrutura nacional. Quando se quer tornar ainda oprimida 56% da sua população, isso não é pouca coisa, afeta mais da metade dos brasileiros – pontua.

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Vanda lembra que o Brasil é pioneiro na implantação de leis para coibir o racismo, mas que é preciso que elas sejam aplicadas.

– Somos um país que tem 56% da sua população negra, temos racismo religioso, denúncia de racismo de todas as práticas, mas não temos nenhum racista preso. Como isso se dá? A partir de como judiciário avalia e dá desfecho para as situações de racismo denunciadas. Temos leis que apontam caminhos a serem percorridos, mas são sempre recortados por outras interpretações que acabam esvaziando processos de denúncia – critica a militante.

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Apesar de o racismo ser considerado crime pela Constituição Federal e uma lei de 1989 definir os crimes de discriminação e preconceito de raça, quando as ofensas com base na cor da pele são dirigidas a um indivíduo, e não à coletividade, costumam ser configuradas como injúria racial, e não racismo. Para Márcio, isso tem relação direta com a sensação de impunidade.

– A injúria não configura propriamente crime, ou não é punitiva de forma exemplar. Ao passo que o crime de racismo, quando configurado, é imprescritível e inafiançável. A injúria racial, não. Nossa luta é para que a injúria racial seja banida, e os casos, tratados como racismo, com as penalidades previstas – defende Márcio.

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Violência policial também preocupa

Se as ofensas e injúrias raciais como a registrada no caso do motorista de aplicativo revelam um racismo já incorporado por parte da população, há outra face do preconceito que preocupa igualmente os militantes do movimento negro, e que também voltaram à tona após a morte do norte-americano George Floyd: a violência policial.

O presidente do Cepa conta que entre dezembro de 2019 e março de 2020 houve uma série de episódios envolvendo intimidação, agressão física, moral e discriminação racial em comunidades de Florianópolis. 

– Por parte do Estado há uma lógica de manutenção de confinamento da população negra. O jovem negro vive assustado com medo do Estado, da polícia. Nós falamos isso a nossos filhos, a que hora eles têm que voltar, como têm que andar de carro quando passar por blitz. Só falta editarmos um manual de sobrevivência para a juventude negra – denuncia Márcio.

Conselho busca delegacia especializada e ensino da história africana

Diante dessas dificuldades, como fazer para combater o racismo e transformar essa realidade? O Cepa age em duas frentes. Em uma delas, dialoga com o colegiado de Segurança Pública de SC para buscar uma formação continuada de policiais em questões raciais. Outra bandeira defendida perante o governo do Estado é a criação de uma delegacia especializada em crimes de racismo.

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Pelo lado social, o conselho aposta na mudança pela educação. A defesa é pelo cumprimento da lei que prevê o ensino da história da África, dos africanos e negros nas escolas públicas e privadas. Segundo ele, apesar de o ensino estar previsto em lei, ainda há resistência por parte de alguns estabelecimentos de ensino. 

– São elementos importantes para que se possa ter mudança no cenário do que modernamente se chama de racismo estrutural. Para enfrentar o racismo, temos que pegá-lo pela raiz. Dentro de casa e dentro das instituições – aponta.

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“Tenho filho e não quero que ele passe por isso”, diz vítima de injúria racial

Para quem sente na pele, como ocorreu com Francisco esta semana, o racismo deixa marcas e muita indignação.

– É como se o mundo desabasse naquela hora, o mundo para. Não sei nem explicar. Só lembro que fiquei nervoso, tremendo. No dia a dia a gente vive o preconceito, mas não de forma assim direta, não é frontal. Tu não fez nada para essa pessoa. Nunca vi esse senhor na minha vida, o que deu na cabeça dele? Senti raiva e dor – conta.

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Francisco é natural da Guiné-Bissau, mas está há 11 anos no Brasil – os últimos cinco, em Florianópolis. O trabalho como motorista de aplicativo se tornou sua única renda depois que os eventos em que trabalhava como garçom foram cancelados por causa da pandemia do novo coronavírus. Ele defende que todos precisam ser respeitados, independentemente da cor da pele, e diz que decidiu denunciar o caso porque espera que essa mudança aconteça:

– Esse é meu sonho. Tenho filho e não quero que ele passe por isso, nem qualquer ser humano. Tem que pensar em grau de igualdade, conhecer o que a pessoa é por dentro. É como um jogo de futebol: para melhorar tem que começar a treinar desde a divisão de base até conseguirmos vencer.