Mais de 100 aposentados por invalidez em um único ano, polêmica, disputas políticas e uma ação judicial que se arrasta na Justiça há 27 anos com destino certo ao arquivo.

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O surto de invalidez na Assembleia Legislativa em 1982, apelidado na época de “máfia das muletas”, contou com todos esses ingredientes. Passados 21 anos, em 2003, o raio parece ter caído novamente no parlamento catarinense, mas com muito mais discrição.

Foram 20 aposentados por invalidez permanente em um único ano. Seria o recordista na história da Assembleia catarinense, não fosse o inacreditável ano de 1982.

Para se ter uma ideia da dimensão do número, de 2004 até hoje apenas 14 novos casos de invalidez foram aprovados pelas juntas médicas do Legislativo. Mesmo assim, o segundo maior surto de invalidez do parlamento catarinense não conseguiu holofotes ou ações judiciais que o questionassem.

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Não é só o alto número que chama atenção. São oito inválidos com problemas cardíacos, seis com menos de 50 anos de idade, sete que foram promovidos poucos meses antes, 15 isentos de pagamento de Imposto de Renda e pelo menos dois com carreira política na época.

Quem presidia a Assembleia Legislativa em 2003, era Volnei Morastoni (PT). Ele foi procurado para falar do surto de invalidez daquele ano, mas não atendeu nem retornou os recados deixados em sua caixa postal. Morastoni, que é médico, foi eleito em 2004 prefeito de Itajaí, cargo que ocupou até 2008. Este ano, voltou ao Legislativo.

Com esses resultados fora do comum, talvez 2003 seja uma boa dica de por onde o Instituto de Previdência de Santa Catarina (Iprev) possa iniciar as perícias médicas sobre os inválidos do serviço público estadual, prometidas para a segunda semana de julho.

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Ou então para o inquérito do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) que investiga as irregularidades apontadas por reportagens do Diário Catarinense e da RBS TV desde 20 de maio, quando foi constatado que pelo menos quatro inválidos da Assembleia Legislativa teriam realizado atividades remuneradas após conquistarem o benefício.

Um dos nomes citados pelas reportagens se aposentou justamente em 2003 com 47 anos: o ex-deputado estadual Pedro Bittencourt Neto.

Um ano antes da invalidez por problemas cardíacos, o ex-parlamentar enfrentou as urnas como candidato a deputado federal.

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Foram 59 mil votos, suficientes apenas para conquistar a segunda suplência pelo PFL. Voltou ao trabalho como advogado da Assembleia, primeiro na bancada do PFL e depois no gabinete do então deputado Antonio Ceron, hoje secretário da Casa Civil. Em agosto, com 47 anos de idade, foi considerado inválido. Hoje, é presidente do conselho da Celesc, que rende R$ 4,4 mil mensais e conselheiro da Casan, onde ganha R$ 2,7 mil por mês.

Não é o único caso de aposentado de 2003 que exerceu cargo público depois de ser considerado incapaz de trabalhar na Assembleia.

Médico foi eleito vice-prefeito

O médico Almir Stadler tentou passar de funcionário a deputado estadual em 2002, mas não teve sorte nas urnas. Foram apenas sete mil votos. Voltou ao trabalho e conseguiu duas licenças médicas. Em julho de 2003, a aposentadoria, também aos 47 anos. Inválido, concorreu a vice-prefeito de São Joaquim no ano seguinte pelo PFL e foi eleito.

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No final do mandato, chegou a assumir a prefeitura por causa, ironicamente, de problemas de saúde do titular, Newton Fontanella. Atualmente, tem se mostrado em boa forma. Inclusive brigou pela vaga de secretário regional de São Joaquim em fevereiro, mas foi preterido por Solange Pagani (PMDB).

O ex-deputado Pedro Bittencourt Neto afirma ter sido aposentado por problemas graves no coração e que as atividades nos conselhos nas duas estatais não são diárias. Almir Stadler foi procurado durante toda a semana pela reportagem da RBS TV e não foi localizado.

Cobrança é antiga

O surto de aposentadorias por invalidez na Assembleia Legislativa em 1982 deixou uma sensação incômoda de impotência. Não bastaram as denúncias, a indignação da população, a exposição das irregularidades nos principais jornais do Estado, as investigações parlamentares, as ações judiciais ou as promessas de grandes perícias médicas. Tudo aconteceu em 1983, um ano depois da polêmica, e ficou por isso mesmo.

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Um passeio pelas páginas dos jornais da época pode causar estranheza a um leitor desavisado, pela semelhança com os discursos realizados desde que a história voltou às manchetes. Em 17 de agosto de 1983, O Estado noticiava: “AL se julga incapaz de rever aposentadorias”. O então presidente Júlio César (PDS) era enfático na entrevista, ao dizer que a mesa não teria “poderes para anular esses atos, a não ser via judicial”.

A maior das saias justas era causada pela onipresença do antecessor Epitácio Bittencourt (PDS), presidente da Assembleia entre 1981 e o início de 1982. Ele fora eleito deputado federal, mas deixara o filho Pedro Bittencourt Neto em seu lugar na Assembleia – inclusive com vaga na mesa diretora. Alguns dias antes, Epitácio havia concedido uma longa entrevista ao jornal O Estado, em que se dizia vítima de uma campanha para denegrir sua imagem. Alegava que, como presidente, recebia as decisões prontas da junta médica, mas admitia critérios subjetivos e partidários para a contratação de funcionários durante sua gestão.

– Pais de família, que tinham condições intelectuais de prestar serviços ao poder público, estavam sofrendo privação e vendo os filhos passando necessidade e fome. E eu, com recursos evidentemente do Estado, que também tem uma finalidade eminentemente social, não poderia ser insensível a estes apelos e atendi a pedidos de nomeações que aí estão a ser contestados – disse Epitácio.

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A polêmica continuou, reforçada pelo relatório da comissão parlamentar que investigou o caso. Era tão ácido que acabou servindo de base para o processo do advogado criminalista Acácio Bernardes que questiona as aposentadorias até hoje. Eram 138 inválidos, 109 por problemas cardíacos, com média de idade de 41 anos, sem outra análise médica que não o atestado apresentado pelo servidor ao pedir o benefício.

Diante desse resultado, Júlio César recuou no discurso. No dia 21 de agosto, o Jornal de Santa Catarina estampava na manchete de sua edição de final de semana: “Assembleia vai rever as aposentadorias”. Em entrevista ao jornalista, hoje colunista do Diário Catarinense, Moacir Pereira, Júlio Cesar disse que buscava a melhor alternativa jurídica para fazer a revisão.

– Não posso negar que os processos foram conduzidos de uma forma muito estranha. Quando a comissão levanta que se aposentaram pessoas com 40 ou 50 dias de atividades na Assembleia, isso deixa o atual presidente muito preocupado – admitiu.

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A polêmica seguiu por mais alguns meses. Quando o processo judicial ganhou corpo, o mesmo Júlio Cesar que se dizia preocupado, contratou advogados independentes para defender a antiga mesa diretora – atitude que resultou em uma nota jocosa do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro: “Contratou dois advogados, por Cr$ 15 milhões, para defender a Casa do Povo contra o Povo. Com o dinheiro do Povo”.

Por insistir no assunto, o então deputado Edison Andrino acabou sendo levado a renunciar à vice-liderança da bancada do PMDB. Andrino continua deputado estadual e é dele a coleção de jornais da época.

– Aquilo foi um absurdo – relembra o deputado.