Magali Oliveira tinha 40 anos quando foi morta pelo ex-marido. Após cometer o crime, o homem fugiu, trancou-se em um quarto e cometeu suicídio. O caso, que aconteceu em Canoinhas, no Planalto Norte de Santa Catarina, em janeiro de 2023, faz parte de uma triste estatística. Dos 56 feminicídios registrados no Estado no ano passado, 11 terminaram com a morte do autor após o crime, quase o triplo do ano anterior, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 

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Os números representam um aumento de 175% em comparação com o mesmo período em 2022. Naquele ano, dos 57 casos registrados no estado catarinense, em quatro o suspeito também cometeu suicídio. Não há números dos anos anteriores. Especialistas dizem que a cultura de poder do homem sobre a mulher e a prática ser o último ato de controle podem explicar as ocorrências.

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Para a delegada e coordenadora das Delegacias Especializadas no Atendimento de Crianças, Adolescentes, Mulheres e Idosos (DPCAMI) de Santa Catarina, Patrícia Zimmermann D’Ávila, estes casos mostram o grau de violência e a relação de poder que os homens exercem sobre as mulheres. 

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— Para a gente ver o grau de toxicidade dessas relações. Ele aceita tirar a sua vida por não aceitar que essa mulher rompa essa relação, que ela se relacione com outra pessoa. Ele está disposto a tudo, [inclusive] a matar a pessoa que ele diz que ele ama, mas na realidade, a gente vê isso como um crime de ódio — comenta.

Algumas das vítimas de feminicídios em 2023

O sentimento de posse e o domínio também são motivações citadas pela Promotora de Justiça Bianca Andrighetti Coelho, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional Criminal e da Segurança Pública (CCR) do Ministério Público catarinense (MPSC). Ela lembra que as ocorrências de morte de mulheres seguidas de suicídio do autor ainda são pouco estudadas, mas uma forma de análise é pensar que os óbitos decorrem do exercício, pelo agressor, do controle final sobre a vítima e sobre si.

Já Adriano Beiras, doutor europeu em Psicologia Social e professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que coordenou um estudo sobre homicídios de mulheres no Estado, financiado pela FAPESC e CNPq em parceria com a UFSC, comenta que os suicídios dos autores pode estar relacionado a aspectos emocionais e planejamento do crime.

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— O suicídio pode acontecer posteriormente ao feminicídio vinculado a um desespero sobre a continuidade e arrependimento do acontecido, ou ainda casos de saúde mental e emocional abalada — explica. 

Assim como cita o pesquisador, no caso de Magali Oliveira, por exemplo, houve o planejamento do crime. Isso porque o suspeito havia a ameaçado diversas vezes antes de executar o feminicídio, foi encontrado morto poucas horas depois e havia deixado uma carta escrita sobre a situação.

Números de feminicídios seguidos de suicídios (Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública)

Aspectos da masculinidade

Segundo Adriano, os preceitos tradicionais da masculinidade também estão relacionados com a violência, já que há a idealização do domínio do feminino, assim como o distanciamento da vulnerabilidade e aspectos emocionais.

Para Júlia Melim Borges, professora da Faculdade Anhanguera e advogada que atua na defesa das mulheres, é preciso trabalhar para que as mulheres conheçam seus direitos, mas também ampliar o diálogo para que haja uma desconstrução de uma cultura do machismo entre os homens. 

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— [Os homens] São criados e desenvolvidos dentro dessa própria cultura reproduzindo todos os estereótipos e violências que viram e que acreditaram que era normal. Então eu acho que além desse diálogo, é a conscientização e políticas públicas — aponta.

A delegada Patrícia Zimmermman aponta que a Polícia Civil tem trabalhado nesta perspectiva, atuando em grupos reflexivos com homens que possuem medidas protetivas.

— Um dos homens que foi, ele hoje dá testemunho para nós e relata que tinha o objetivo de matar a companheira e tirar a vida dele logo em seguida. Quando ele  veio para a medida protetiva, ele começou a participar do grupo reflexivo, pôde falar a respeito da vida dele, do histórico e refletir sobre isso. Ele desistiu [do feminicídio] e usa as técnicas que ele aprendeu no grupo reflexivo até para o trabalho, não para a agressão física. Muitos homens que estão envolvidos nessa situação de violência doméstica têm a naturalização da violência dentro de casa. Então quando a gente fala de fator cultural, ainda é muito forte isso — destaca a delegada.

O psicólogo e pesquisador Adriano Beiras também ressalta o trabalho feito pelos grupos reflexivos. O especialista aponta que este é um importante trabalho preventivo, visto que as reuniões pautam aspectos relacionados a diferentes expressões de masculinidades, desvinculação entre masculinidades e violências, controle da raiva, contato com emoções diversas, patriarcado, empatia com as mulheres, habilidades relacionais no casal, entre outros temas. 

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Além disso, Adriano menciona que, atualmente, participa da construção de uma política judiciária nacional sobre a criação e manutenção destes grupos reflexivos com critérios mínimos e recomendações que foram desenvolvidas a partir de pesquisas do Grupo Margens/UFSC junto com o Colégio de Coordenadores da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cocevid) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2023, foram mapeados 498 destes grupos no país, sendo 43 em Santa Catarina.

O combate aos casos de violência

Júlia Melim Borges, advogada que trabalha em defesa das mulheres, também exalta a importância de que as mulheres conheçam seus direitos e possam reconhecer as violências, não só física, mas moral, sexual, patrimonial e psicológica.

— Ela precisa tomar consciência de quais são as formas de violência e, a partir disso, reconhecer que aquilo é uma violência e um relacionamento abusivo. E como elas podem se proteger? Eu acredito que as mulheres precisam estar fortes mentalmente, ter apoio psicológico, cuidar da saúde mental, ter uma rede de apoio dentro da própria família, buscar amigos, ter advogado que trabalha na perspectiva de gênero para que possam com essa rede ir se fortalecendo. E façam um boletim de ocorrência e denunciem esse agressor. Inclusive pode pedir a prestação de medidas protetivas de urgência — ressalta Júlia. 

A delegada Patrícia lembra que o boletim de ocorrência resulta em um histórico sobre aquele homem. Inclusive, quando a vítima vai até a delegacia, a equipe policial pode consultar se ele já possui denúncia de violência. Eles analisam os relatos e orientam a mulher indicando a necessidade de uma medida protetiva em casos mais graves.

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Números de feminicídios no Brasil (Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública)

Em 2023, mesmo ano que foram registrados 56 feminicídios em Santa Catarina, o Estado também concedeu 666,3 medidas protetivas. Em 2022, quando ocorreram 57 feminicídios, SC tinha 494,6 medidas protetivas concedidas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Para a Promotora de Justiça Bianca Andrighetti Coelho, mais do que buscar uma explicação, o crescimento dos casos de feminicídio seguidos de suicídio apontam uma necessidade de se pensar em políticas que busquem enfrentar as consequências dessa violência para que a temática seja tratada de forma mais estratégica e rigorosa.

— Devemos atuar de modo preventivo com informação e difusão de conhecimento. Para tanto, a implementação de políticas públicas que visem a conscientização da população e o fortalecimento das redes de proteção da mulher são alguns caminhos possíveis na luta contra esse grave problema. Além disso há a necessidade de se desenvolver pesquisas e ações para se prevenir o suicídio e se promover a saúde mental — aponta. 

Como denunciar a violência contra a mulher

  • Realizar a chamada ao 190 e conversar como se estivesse realizando um pedido de delivery é uma forma útil de pedir socorro;
     
  • Qualquer cidadão pode fazer denúncias através da Central de Atendimento à Mulher, pelo número telefônico 180. As delegacias especializadas não são direcionadas a tratar apenas destes tipos penais, permitindo um socorro de forma mais ampla;
     
  • Por meio da Delegacia Virtual da Polícia Civil;
     
  • Disque Denúncia 181 (aceita denúncia anônima) ou (48) 98844-0011 (WhatsApp/Telegram).

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