“O ex-presidente brasileiro João Goulart, Jango, foi assassinado em 6 de dezembro de 1976”. A frase é a abertura de uma grande reportagem publicada pelo Diário Catarinense em 14 de maio de 2000. Baseado em depoimentos de amigos e familiares do presidente deposto em 1964, o caderno especial de oito páginas mostrava contundentes indícios de que a morte de Jango estava longe de ser natural.

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O empresário uruguaio Henrique Diaz apontava para um complô que misturava interesses políticos e econômicos. A denúncia envolvia o ex-deputado pernambucano Cláudio Braga e o ex-prefeito de Brasília Ivo de Magalhães, ambos assessores de Jango que, imediatamente após a sua morte, teriam se apropriado ilegalmente de grande quantidade de dinheiro dele. Procurados pela reportagem, eles negaram qualquer envolvimento. O piloto e braço direito do ex-presidente, Rubens Rivero, confirmava a tese, com base no roubo de ações em papel que somavam US$ 20 milhões.

A viúva Maria Thereza falou que suspeitava de envenenamento, lembrando do último almoço de Jango com “homens de negócios”, num hotel em Pasos de los Libres, na Argentina, perto da fazenda La Villa, onde ele morreu na madrugada seguinte.

Na época, pela primeira vez, ela disse que aceitaria a exumação do corpo do marido. O filho João Vicente contou que, meses antes da morte, seu pai sofreu uma tentativa de sequestro em Buenos Aires. Já o ex-governador Leonel Brizola disse que não tinha dúvidas do assassinato, responsabilizando a Operação Condor, ação conjunta das ditaduras militares do Cone Sul para eliminar inimigos políticos. Para ele, a falta de autópsia no corpo do ex-presidente reforçou ainda mais a sua convicção.

O ex-motorista de Jango, José Rivero, afirmou que o ex-presidente teve um grave acidente, com indícios de sabotagem, enquanto dirigia uma camionete indo para sua fazenda em Tacuarembó, Uruguai. Inexplicavelmente, o veículo saiu da estrada numa reta, capotou e causou a morte de um peão que viajava junto.

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Era a primeira vez que um veículo de comunicação estava pesquisando a fundo as suspeitas que envolviam a morte de Jango. Baseada numa detalhada investigação jornalística, a matéria trouxe indícios fundamentados sobre a hipótese de assassinato.

A cosmopolita equipe do DC – formada pelo jornalista argentino que escreve este resgate histórico, o fotógrafo uruguaio Daniel Conzi e o motorista brasileiro Edson Arruda – percorreu 4 mil quilômetros de carro, durante uma semana, para fazer as entrevistas e visitar os locais onde Jango viveu no exílio, no Uruguai e na Argentina, além de refazer a última viagem do ex-presidente, que saiu de Tacuarembó até a fronteira com Argentina, atravessou de barco até a outra margem do Rio Uruguai, foi a Paso de los Libres e chegou na fazenda, onde morreu no dia seguinte.

O jornal foi o primeiro e único veículo de comunicação a ter acesso ao quarto em que Jango faleceu, entrada facilitada pelo caseiro da estância. Para chegar ao local, sem aviso prévio, a equipe de reportagem passou por cima da porteira chaveada e caminhou 500 metros até o casco da fazenda, sob a ameaça de um bando de cachorros que nos recebeu de forma hostil. O funcionário da fazenda pouco pôde ajudar na investigação, porém, foi possível fotografar o lugar onde Jango deitou para nunca mais acordar.

Treze anos depois, a denúncia apresentada pelo DC e pelo jornal Zero Hora ganhou destaque em 2013, com o premiado filme Dossiê Jango que reproduz, em cinco momentos diferentes, grande parte da reportagem do Diário: desde a manchete Jango Foi Assassinado até as páginas internas do suplemento especial com os títulos Não tenho dúvidas sobre o assassinato e Brizola acredita em assassinato.

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O diretor do documentário, Paulo Henrique Fontenelle, só esqueceu de identificar a origem das imagens ou pelo menos, nos créditos no final do filme, agradecer ao DC pelo uso do material. Inclusive no trailer promocional de dois minutos as páginas do Diário Catarinense aparecem em três oportunidades. O belo filme, que agora pode ser visto no YouTube, apresenta vários personagens da reportagem do jornal, com o importante acréscimo de um ex-agente do serviço secreto uruguaio, preso no Rio Grande do Sul, que em 2002 confessou ter participado de uma trama que trocou o remédio para o coração que Jango usava e, assim, provocar o enfarte.

O documentário também faz menção à ?Maldição do Faraó?, já que várias pessoas que sustentavam a tese do assassinato morreram em circunstâncias suspeitas, inclusive o empresário Henrique Diaz e o piloto Rubens Rivero. Este último, menos de um mês depois da publicação da matéria do DC, foi convocado pela Justiça uruguaia para confirmar a denúncia.

Na curta viagem de Buenos Aires, onde morava, para Colônia, ele teve um enfarte fulminante e faleceu no Buquebus, que faz a travessia do Rio da Prata em menos de três horas. A pasta com a documentação que sustentava a acusação sumiu e nunca foi encontrada.

A reportagem do DC serviu também como material de apoio da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que, entre 2000 e 2001, investigou as suspeitas de assassinato de Jango. A conclusão divulgada pela Comissão se encaixa perfeitamente no anseio que norteou a apuração jornalística do Diário Catarinense:

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“Não há como afirmar peremptoriamente que Jango foi assassinado, mas será profundamente irresponsável, diante dos depoimentos e fatos aqui consolidados, concluir pela normalidade das circunstâncias em que João Goulart morreu. Estamos escrevendo apenas o começo de uma história. O tempo em breve se encarregará de completá-la.”

A recente exumação do corpo do ex-presidente certamente poderá ajudar a esclarecer o episódio que, neste 6 de dezembro, completou 37 anos.

* Jornalista e professor