Maria* recebeu a visita do pai na tarde do último domingo (13). Ao cumprimentá-la, o homem logo notou a lesão na boca da filha. Com um pouco de insistência, confirmou a desconfiança: ela foi agredida pelo marido com socos no rosto e chute na perna. O pai não titubeou, pegou o telefone e acionou a Polícia Militar.
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O que era para ser mais um caso de violência doméstica comum, entrou para um arquivo inexplorado pelas autoridades: a mulher preferiu não representar contra o companheiro. Eles foram à delegacia, como manda a lei (em casos de visível agressão contra a mulher, os agentes precisam levar os envolvidos à Polícia Civil, mesmo que a vítima não queira), mas o caso não foi adiante.
O episódio não é incomum. Há muitas vítimas que chegam à delegacia e desistem de depor. Os motivos variam, mas também se repetem: culpa, medo e desamparo são os principais. A psicóloga Sheila Fagundes Isleb, que trabalha com grupos de mulheres vítimas de violência doméstica em Blumenau, explica que fatores socioeconômicos e culturais pesam muito nestes casos.
— Elas se sentem culpadas por essa ruptura na família, por privar os filhos do convívio com o pai. Ficam desamparadas economicamente porque as políticas públicas não são suficientes. Além disso, a mesma sociedade que diz que as mulheres não devem aceitar a violência é a que se fecha quando uma vítima decide romper o silêncio — avalia a psicóloga.
Foi o medo que fez Maria recuar. Segundo relato dos policiais militares que atenderam a ocorrência, o marido repetia a todo momento que se vingaria e tiraria o filho do casal da mulher. Nervosa, com a mão sobre a boca na tentativa de esconder o machucado, disse que nada havia acontecido. O ciclo de violência não foi encerrado.
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Para o delegado Felipe Orsi, da Delegacia de Proteção à Criança, Mulher, Adolescente e Idoso de Blumenau (DPCAMI), a falta de estrutura nesses locais também contribui para a desistência. Com poucos profissionais, inclusive em espaços especializados como a DPCAMI, a mulher se sente ainda mais sozinha. Receosas com as ameaças recebidas, decidem que não vale a pena ir até o fim.
— Muitas vezes a palavra da vítima é a única prova que temos. Se ela desiste, é um grande obstáculo para nós — lamenta Orsi.
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Sem elementos para abrir um inquérito, as histórias caem no esquecimento. Com dezenas de casos que chegam diariamente, não há tempo para estimar quantos são deixados para trás por desistência, quem dirá acompanhar a situação da mulher.
“A denúncia não ocorre na primeira agressão”
A tenente Karla Medeiros, da PM de Blumenau, explica que normalmente vítimas de ameaças desistem da queixa, diferente das que sofrem violência física.
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— Até porque o chamado nunca ocorre na primeira agressão, em mais de 90% dos casos a mulher pede ajuda quando há reincidência, porque foi agredida mais vezes — conta a policial, que lidera a Rede Catarina, programa da PM criado para acompanhar mulheres que pediram medida protetiva contra os ex-companheiros.
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A descrença de que o homem sofrerá uma punição severa, a vontade de não reviver a violência durante um processo judicial e todos os outros esforços que situações como essas exigem da mulher — como mudança de cidade e telefone muitas vezes — são mais alguns fatores que influenciam não só no arrependimento ao chegar na delegacia, como na decisão de sequer buscar ajuda. E essa é outra estatística que as autoridades não têm como mensurar.
Em busca de soluções
Pequenas ações já existem na região, como a própria Rede Catarina, outros projetos não ligados a instituições governamentais e o grupo monitorado por Sheila. Ela conta que há casos de mulheres que não registraram boletim de ocorrência contra os ex-companheiros, mas que chegam ao projeto através dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) do município. De qualquer forma, é preciso que haja interesse da vítima em falar sobre o que passou.
Para a tenente e o delegado, além da prevenção, com educação desde a infância para que atitudes violentas e machistas não sejam toleradas, é preciso incentivar a divulgação dos direitos das mulheres.
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— Por exemplo, existe um mecanismo interessante: a mulher pode pedir a medida protetiva mesmo que escolha não representar contra o agressor — cita Orsi.
— Podemos estimular a denúncia mudando a lógica da responsabilização à mulher, disseminando conhecimento sobre a lei, fortalecendo as políticas públicas de proteção e capacitando os executores da lei — resume Sheila.
Punição a agressores
O delegado lembra que com a chegada da lei Maria da Penha há alguns passos burocráticos que são dados com muita rapidez quando necessário, como o pedido de medida protetiva de urgência. Já os crimes cometidos no âmbito doméstico, mesmo que de menor potencial, como uma ameça, resultam em consequências mais duras (prisão em flagrante).
As penas variam conforme a gravidade da infração. A violência doméstica pode ser desde uma injúria até um assassinato (feminicídio). No caso da lesão corporal, se cometida contra a companheira, há aumento de pena de até três anos.
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Casos diários
Blumenau e região protagonizam ocorrências similares à que abre esta reportagem com frequência. Como a PM da cidade divulga os casos nos relatórios diários, eles acabam ganhando visibilidade na sociedade. Recentemente, uma briga que começou por conteúdos no celular terminou em agressão em Pomerode. Outra, resultou em ameaça de morte com arma de fogo em Blumenau. Em ambos os casos os homens foram presos em flagrante.
Na semana passada, um homem degolou a companheira por não aceitar o fim da relação. Em julho, uma mulher foi levada ao hospital após marido pisar nela durante briga. São diversos exemplos de uma realidade vivenciada por inúmeras mulheres do Vale do Itajaí e do mundo.
* A reportagem adotou um nome fictício para preservar a identidade da vítima.