Quando tiram a coleira na pracinha perto de casa no bairro Kobrasol, em São José, os labradores King e Ian, de três anos, correm, pulam, brincam e chamam a atenção de quem passa pela beleza, carisma e bagunça que fazem, típico da raça. Ian tem pelos pretos, porte grande, é agitado e caminha rápido. Já King tem o pelo claro, porte pequeno e é mais tranquilo.
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As características dos dois cães não impedem que vivam juntos em harmonia, mas não é por acaso que eles têm donos diferentes. King pertence a Ingrid Franco Medina, 22 anos, estudante de serviço social, cega desde os 16 anos devido a um glaucoma congênito. Ian é o cão de Maurício Henrique Padilha, 26 anos, que perdeu a visão na infância também por glaucoma. O casal de noivos está junto há três anos, há um ano divide o mesmo teto, mas a família ganhou os novos integrantes em agosto de 2015, com o papel de guiá-los por onde forem.
— Ele é meus olhos hoje, o tratamento tem que ser quase como de um filho, eu cuido dele, ele cuida de mim. O ditado diz que o cão é o melhor amigo do homem, mas no nosso caso eles são mais do que amigos, fazem parte da gente — fala Ingrid.
Os noivos se conheceram pela internet, por intermédio de uma amiga em comum. Na época, Ingrid morava em Brasília, e depois de muita conversa, veio sozinha para São José conhecer pessoalmente a paquera virtual. O casal é totalmente independente e dominava a mobilidade com a bengala, mas afirma que a chegada dos cães-guia deu um novo ritmo para a vida, agilizando o deslocamento pelas ruas das cidades com problemas sérios de acessibilidade. A rotina com os companheiros caninos inclui trabalho, estudos e momentos de descanso para os cães.
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Rotina
Ingrid sai de casa cedo para chegar no serviço de telefonista no Centro de Florianópolis. São dois ônibus até o local, sempre acompanhada de King. Às 15h ela deixa o trabalho e vai para a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde cursa o primeiro semestre de serviço social.
Maurício está desempregado no momento, então tem parte do dia livre até o horário de ir para a faculdade de ciência da computação na Univali no período noturno. Como a faculdade é perto de casa, vai caminhando com Ian até o campus.
Se já não é fácil caminhar pela avenida Central do Kobrasol para quem enxerga, para eles a dificuldade é ainda maior. As calçadas são irregulares, motoristas estacionam carros no meio da guia, há muitos obstáculos. Além disso, existem muitas distrações para os cães, como alto falantes e caixas de som.
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No sábado, dia 7 de maio, foi dia de King tomar uma vacina de rotina. Quando a família sai toda junta para passear, geralmente Ian é quem comanda o quarteto. Como é um caminho pouco habitual para os cães, Ian guiou muito rápido, e o casal acabou se perdendo um do outros pelas ruas:
— Geralmente isso não acontece, mas como está muito movimentado acabamos fazendo caminhos diferentes. Quando é algo que eles não estão acostumados acabam cheirando mais, têm muitas distrações, então às vezes temos que voltar e fazer o caminho de novo com eles, para aprenderem bem. Eu memorizo pela quantidade de quadras e travessias que temos que fazer — explica Ingrid.
Com o desencontro, Ingrid acabou parando em outra clínica veterinária que encontrou pelo caminho e Maurício voltou pra casa. No local, o médico constatou que King está com otite causada por fungos, doença comum em labradores, e receitou medicamento. O veterinário também recomendou que o cão tomasse a vacina da gripe. A clínica tem um trabalho social e cobrou um valor mais barato, mas a da gripe vai ficar para o próximo mês. Ingrid comenta que não é barato manter os cães:
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— A gente não recebe auxílio nenhum, temos que arcar com todos os custos de ração, vacinas e como são dois, fica pesado pra gente — comenta.
Agilidade e socialização
Maurício destaca que além dos ganhos na agilidade, a chegada de Ian em sua vida ajudou muito na socialização. Natural do Rio Grande do Sul, ele elogia a acolhida dos catarinenses, e diz que com o cão as pessoas são ainda mais receptivas:
— Aqui as coisas são bem tranquilas, tanto em locais públicos, como no transporte coletivo. Conseguimos circular bem com eles, as pessoas se aproximam para ajudar, conversam, perguntam sobre o cão — conta.
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Ingrid também destaca o a melhoria na convivência:
— Parece que com a bengala as pessoas têm um certo receio de se aproximar. Com o cão-guia é o contrário, ele acaba aproximando as pessoas da gente.

Primeiro cão-guia a circular pela UFSC
Desde o início do ano letivo, Ingrid e King passaram a frequentar o campus da Trindade da UFSC. A jovem é a primeira aluna com cão-guia da universidade, que repassou orientações para a comunidade escolar. Apesar de King ser um cão muito dócil e carinhoso, Ingrid explica que não é aconselhável que as pessoas façam carinho e brinquem com o cachorro enquanto ele está trabalhando, pois ele pode perder a concentração:
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— A gente foi alguns dias na UFSC antes de começar as aulas e treinamos os caminhos, agora ele já conhece. Na sala de aula ele fica bem quietinho, o único problema é que tem muitos cachorros, alguns latem e vão pra cima dele — comenta.

Com uma rotina puxada, Ingrid já sai de casa preparada para passar o dia fora, levando ração e o potinho de tomar água de King. Muito disciplinado, o cão tem horário certo para fazer as necessidades, e avisa no caso de emergência. No treinamento, Ingrid também aprendeu a reconhecer os sinais do cão, e a falta de visão não é desculpa para não recolher o cocô:
— É uma das coisas que aprendemos no treinamento. A gente aprende a identificar, e com a convivência já sabe o jeito dele. O King, por exemplo, sempre gira antes, daí eu sei onde ele parou — explica.
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Treinamento e fila de espera
Apesar de terem conseguido os cães-guia na mesma época, Ingrid e Maurício tiveram que percorrer um longo caminho. Em 2014, o casal se inscreveu no cadastro nacional da Secretaria de Direitos Humanos como candidatos à utilização de cães-guia, preencheram todos os requisitos — dentre eles ter o treinamento de bengala, possuir condições físicas e financeiras — e foram chamados para entrevista. Mas ainda assim, era preciso que o tamanho e a personalidade dos cães treinados fosse compatível com a dos futuros donos.
Somente após passarem três semanas com King e Ian no Centro de Formação de Treinadores e Instrutores de Cães-Guia no Instituto Federal Catarinense (IFC), em Camboriú, é que tiveram certeza que estavam aptos a receberem os cães.
Segundo o IFC, no Brasil, se inscreveram cerca de 470 pessoas no cadastro nacional, e somente 18 cães foram entregues até o momento. Estimativas não-oficias de ONGs relatam que no Brasil existem entre 100 e 120 cães-guia atuando, e uma fila de espera de mais de 3 mil deficientes visuais.
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Uma das principais barreiras é o alto custo para o treinamento deste cães, que ultrapassa os R$ 30 mil. Não é permitido por lei se obter lucro com a venda deste tipo de cão, por isso eles são sempre doados para pessoas que estão nas filas de espera. Há pouco tempo o Governo Federal começou o programa para treinamento de instrutores e cães em Institutos Federais, o que leva em média dois anos, e o de Camboriú é o único que já formou turma.
O treinador instrutor do IFC, Leonardo Goulart Nunes, explica que treinamento é longo, cerca de dois anos, e nem todos os cães treinados vão estar aptos para o serviços. Dos 48 cães que foram treinados no IFC-Camboriú, somente 18 ficaram aptos para o trabalhos, e destes, 16 já foram entregues para cegos da região Sul:
— Assim que nasce, o cão passa por uma fase de socialização, com uma família que vai recebe-lo por cerca de 15 meses. Depois disso, volta para o centro de treinamento, onde serão introduzidas as técnicas, em que ele vai aprender a identificar obstáculos, saber diferenciar o momento do trabalho do de lazer.
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Nunes explica que que os cães-guia também aprendem o que chamam de “desobediência inteligente”, nos casos em que eles percebem o perigo e decidem não obedecer o comando do dono, para atravessar uma rua por exemplo.
No Brasil, as raças mais comuns treinadas são labradores, golden retriver e flat coated retriever, por serem considerados cães muitos inteligentes, obedientes e bem aceitos pela sociedade.