Santa Catarina está entre os estados com maior quantidade de casos de estupro no país. Além disso, contrariando esteriótipos, o crime também é frequente em famílias com renda e escolaridade altas. Essas são algumas das conclusões da “Cartografia do estupro”, elaborada pelo geógrafo e doutorando em Geografia Humana na Universidade de São Paulo (USP), Igor Venceslau.

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No começo dos anos 1990, as manchetes dos jornais colocavam Santa Catarina como o Estado com o maior número de casos de Aids no país. Em outro ranking negativo, o do trabalho infantil, SC também figurava como líder. Para os dois exemplos, a justificativa era a mesma: a notificação dos casos, segundo autoridades. 

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Outra situação visível era a questão socioeconômica — fosse da pessoa infectada pelo HIV ou da criança que precisava trabalhar para ajudar a família. Os mais vulneráveis eram mais acessíveis e, por consequência, expostos. Para Venceslau, quando o assunto é estupro a situação não mudou.

— Estupros acontecem com muita frequência também nos lares mais ricos e com maior escolaridade — diz ele. 

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Veja a entrevista com o pesquisador, que devido ao trabalho com os mapas, recebe um convite para assinar uma coluna no portal Outras Palavras chamada Outras Cartografias.

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O que motivou você a escrever a “Cartografia do estupro”?

O chocante caso de uma criança estuprada numa cidade do interior do Espírito Santo, que ganhou as páginas dos noticiários do país me levou a buscar mais informações sobre o tema. Com a pesquisa dos dados, encontrei no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a fonte mais atualizada e confiável a esse respeito, resolvi criar algo novo a partir daquelas estatísticas. Com isso geramos o mapa denominado “Mulheres vítimas de estupro no Brasil” e o artigo publicado sob o título “Surpreendente cartografia dos estupros no Brasil”.

O resultado com nomes dos estados do Sul do Brasil, como Santa Catarina e Paraná, no topo de uma estatística tão trágica o surpreende? Por qual motivo?

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No sul do Brasil a situação é preocupante porque todos os estados estão acima dessa média, sendo que em Santa Catarina, que ocupa o terceiro lugar no país, essa taxa é praticamente o dobro (101,3 estupros a cada 100 mil mulheres). O Paraná está em quarto lugar com 93,2 estupros/100 mil e o Rio Grande do Sul em novo com 69 estupros/100 mil mulheres em 2018.

O que isto nos revela?

O mapa ajuda a quebrar estereótipos territoriais num país onde a região Sul é sempre vista como mais segura e melhor para viver, enquanto outras como o Nordeste estão relacionadas a um imaginário de insegurança. O que surpreende é que a violência está presente em todos as regiões brasileiros em números altíssimos. Como o dado é gerado apenas quando há denúncia, também pode indicar uma maior quantidade de denúncias em algumas regiões que outras. Quanto mais denúncias, maior a possibilidade de atualizar essa cartografia para mais próxima da realidade, mas é preciso garantir condições seguras para que as vítimas possam denunciar, já que a 3 a cada 4 estupradores são familiares ou vizinhos.

Como pesquisador, o que esta realidade mostra sobre a nossa sociedade no sul do Brasil e que tem uma região considerada com elevados índices de desenvolvimento social e humano?

Esse mapa mostra que o desenvolvimento econômico e social não é suficiente para garantir a redução da violência contra mulheres e vulneráveis, especialmente as crianças de até 14 anos que respondem por mais da metade das vítimas de estupro no Brasil. Na prática, isso significa que estupros acontecem com muita frequência também nos lares mais ricos e com maior escolaridade.

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Você tem alguma sugestão para que se possa mudar esta cultura de violência que emerge do machismo?

É preciso quebrar o preconceito para não achar que aumentar os índices econômicos e sociais seriam medidas suficientes. A urgência é por uma política específica de combate ao estupro no Brasil, o que as mulheres já vêm exigindo há muitos anos. Também não basta pedir que as vítimas denunciem, é preciso criar condições seguras para isso. Um primeiro passo seria aumentar significativamente o número de Delegacias da Mulher, principalmente nas cidades do interior.

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A educação das crianças poderia ajudar? 

Um outro passo importante seria uma política de educação sexual ampla nas escolas brasileiras, o que possibilitaria alguma esperança de surgir uma geração com outra mentalidade. Infelizmente o governo brasileiro se abstém da questão e a educação sexual fica a cargo das famílias (as mesmas onde estão a maioria dos estupradores) e da pornografia, que expõe cada vez mais cedo as crianças e jovens a comportamentos estereotipados e violentos. Também é preciso informar a sociedade de uma maneira geral e divulgar esses dados: no caso da criança capixaba, a cobertura da mídia foi sobretudo do caso específico, poucas matérias discutindo esse problema como cotidiano de todos os lugares do país. É sobre esse último ponto que tentamos contribuir de alguma maneira.

Você sugere uma pauta permanente desse tema? 

Seria oportuno divulgar o mapa e outros materiais produzidos a esse respeito, não somente quando o assunto estiver em pauta, mas em vários momentos possíveis, estimulando a sociedade para discutir a questão. Os veículos de mídia também possuem um papel educativo relevante.

Serviço

Em Santa Catarina, existem 31 delegacias especializadas em proteção à criança, ao adolescente, à mulher e ao idoso (DPCAMI). A Policia Civil disponibiliza o 181, disque-denúncia que funciona 24 horas por dia e garante o anonimato do denunciante – as ligações não são rastreadas. De forma remota é possível fazer a denúncia através do WhatsApp, pelo número (48) 98844-0011, ou pela Delegacia Virtual, na qual é possível registrar Boletim de Ocorrência sem sair de casa. Para situações de emergência, a Polícia Militar pode ser chamada pelo 190. A corporação também tem o Aplicativo PMSC Cidadão. Em nível federal há o Disque 100, também conhecido como Disque Direitos Humanos.

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