O CD duplo Carta de Amor começa com o violão de Gismonti anunciando o tema da faixa-título, seguido pelo sax soprano de Jan Garbarek e só depois pelo baixo de Charlie Haden. É um tema lírico, como tantos outros que Gismonti compôs em quatro décadas de carreira, entre eles o tocante Palhaço (segundo CD), traduzindo a conversa harmônica que o trio teve nesse show antológico que, por uma dessas razões inexplicáveis, ficou guardado por 30 anos nos arquivos da gravadora ECM.
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O magnetismo de Gismonti, contudo, é poderoso. Um dia, o produtor Manfred Eicher decidiu resgatar essas fitas do limbo fonográfico para mostrar às novas gerações de músicos como três instrumentistas e compositores resolveram, em comum acordo, tocar peças uns dos outros para entender o que significa a palavra alteridade.
A sintaxe de três indivíduos, diferentes em tudo, não poderia ser mais semelhante. Tome-se como exemplo a segunda faixa do primeiro disco, La Pasionaria, criada para a Liberation Music Orchestra que Haden manteve com Carla Bley e que ressuscitou em 2005 – da formação original, dos anos 1970, fazia parte, entre outros, o argentino Gato Barbieri (autor da trilha de O Último Tango em Paris).
La Pasionaria é um tributo à rebelde republicana e líder comunista Dolores Ibárruri (1895-1989), que se tornou famosa ao desafiar as tropas do general Franco com a frase Eles não passarão e morreu no ano em que caiu o Muro de Berlim. Na gravação com Carla Bley, La Pasionaria vira, de fato, um grito de guerra.
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No show do trio Gismonti-Haden-Garbarek na Amerika Haus, a discussão ideológica é neutralizada com o entendimento entre os instrumentistas e o respeito ao fraseado do baixo de Haden, um homem de convicção ideológica que chegou a ser perseguido pelo FBI por sua militância anticolonialista e críticas ao apoio dos EUA às ditaduras latinas no passado.
Sem esforço aparente, Haden e Garbarek entram no mundo das pesquisas étnicas de Gismonti e tocam Cego Aderaldo como se entendessem, de fato, que o brasileiro está falando do caldeirão de culturas que é o Brasil, do cruzamento híbrido entre a tradição árabe (da qual Gismonti é legatário) e a linguagem melódica do Nordeste brasileiro.
Há uma correspondência simétrica entre esse diálogo e o que o trio mantém na faixa seguinte, Folk Song, que Garbarek compôs tomando emprestado temas folclóricos da Noruega. No final, é o violão de Gismonti que serve de baliza nessa viagem transcultural em direção aos fiordes.
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