De todas as minhas esquisitices, talvez o fato de não dirigir e de sofrer do Mal de Montano sejam as menores. Bom, o fato de não dirigir remonta a minha adolescência: enquanto meus colegas chegavam a estudar o funcionamento dos veículos com manuais e conversavam horas e horas a fio sobre a potência de motores, eu passava minhas tardes livres tentando entender o que diziam os filósofos daquela coleção azul da Abril Editora. Embora na época eu não entendesse muita coisa, o pouco que conseguia absorver era uma espécie de iluminação. É claro que todos os meus colegas começaram a namorar antes de mim (embora as meninas gostassem de escutar meus solilóquios sobre Nietzsche e Heidegger). A única vez que dirigi por mais de quinze minutos foi aos dezoito anos, na auto-escola, e, claro, contei com a paciência de meia cidade (mas por incrível que pareça, consegui tirar a carteira de motorista, pois no dia do teste, até hoje não entendo, dirigi perfeitamente, para logo depois desaprender completamente)… E para se ter uma idéia do disparate que é essa história, já fui noivo da filha de um proprietário de uma mecânica e revenda de autopeças (e três namoradas minhas já tentaram insistentemente me re-ensinar a dirigir, e nada) e mesmo gastando uma fortuna de táxi todos os meses, nada mais me convence a dirigir… Agora já se tornou uma marca registrada (e até birra), já que sempre ouço o papo da “independência” e do “status” de ser um motorista. Não quero dirigir, pois todo mundo quase o sabe, e prefiro arrastar minha carcaça ao sol do que ficar grosnando e gesticulando como um babuíno no trânsito… Mas acho mesmo que é meu instinto de sobrevivência que não quer ver-me atrás de um volante, pois sou muito distraído e dado a longas incursões interiores. Provavelmente bateria num Mercedes S500 tentando lembrar uma estrofe de Dylan Thomas ou uma citação de Walter Benjamim.
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Falando em literatura… O Mal de Montano é a obsessão pela literatura e pelo literário, pelo desejo de ser a “memória da literatura” encarnada e pela busca de um antídoto para a morte da literatura.
O termo foi criado pelo romancista catalão Enrique Vila-Matas em seu romance-ensaio O mal de Montano, e pode ser resumido no seguinte parágrafo do livro:
“Talvez a literatura seja isso: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa, inventar um duplo. Ricardo Piglia diz que recordar com uma memória estranha é uma variante do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da experiência literária. Acabo de citar Piglia e constato que vivo rodeado de citações de livros e autores. Enfermo da literatura. Se continuasse assim, ela poderia acabar por me engolir, como um espantalho dentro de um remoinho, até fazer com que me perdesse nos seus confins sem limites. A literatura asfixia-me cada vez mais, aos cinqüenta anos angustia-me pensar que o meu destino seja acabar por me converter num dicionário ambulante de citações.”
O Mal me afeta de tal forma, que escrevo sempre neste espaço, de forma obsessiva, sobre um único tema: a literatura e a sua capacidade de transfigurar esta coisa incerta a qual chamamos vida… Afinal, como diz Vila-matas, “não há melhor forma de se livrar de uma obsessão do que escrever sobre ela”.
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