Conheci o escritor Wilson Bueno em 2006, no evento Folia das Falas, em Florianópolis. Trocamos alguma correspondência mínima nos anos posteriores, principalmente sobre literatura contemporânea. Em 2010, com 61 anos, Bueno foi encontrado morto na casa onde morava, no Bairro Santa Cândida, em Curitiba, com um corte no pescoço feito por uma faca de sua cozinha. O principal suspeito foi preso e passou alguns anos retido, sendo absolvido pelo júri em 2014.
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Paranaense de Jaguapitã, publicou treze livros. Embora A copista de Kafka, Amar-te a ti nem sei se com carícias, Meu tio Roseno a cavalo, Cachorros do céu e Mano, a noite está velha tenham encontrado grande espaço crítico, foi Mar paraguayo que promoveu uma verdadeira ruptura na literatura brasileira. E ele sabia disso: “Desejei dar uma resposta estética ao isolamento histórico em que se encontravam submergidas as línguas do continente hispano-americano. Ao mesmo tempo, tudo me indicava a direção de um personagem que fosse um pouco nosso alma comum, nossa alma cachorra e perturbada pelo drama.”*
Neste janeiro de 2017 completam-se 25 anos da publicação deste marco escrito em “portunhol”, uma mistura de espanhol, português e guarani, onde se conta a vida de uma sofrida mulher e el viejo. “Acho incrível que a língua Guarani, presente em Mar paraguayo, tenha sobrevivido há séculos de dominação, sob o jugo dos métodos mais infames, e que está aqui, tensa, intensa, alegre, docemente manejada pela poesia, ela mesma um poema em estado bruto.” *
A primeira edição brasileira está esgotada há muito tempo, e quando aparece em sebos, custa uma pequena fortuna. Com um pouco de sorte é possível encontrar no Brasil a edição mexicana ou argentina.
Tempo, narrativa e o portunhol selvagem
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O poeta Ricardo Corona, autor de Curare, livro de poemas que dialoga com a quase extinta língua Xetá (da família linguística tupi-guarani) foi próximo do autor e lembra: “É difícil dar um testemunho sobre Mar paraguayo sem confundir obra e autor. É inevitável lembrar do amigo. Falávamos muito ao telefone, madrugada adentro. Me dava dicas sobre edição de revista. Chamava-o de Lobisomem e ele, carinhosamente, me deu o apelido de Abominável Homem das Neves. Fazíamos uma espécie de curadoria desta galeria de “monstros” curitibanos: Valêncio Frankeinstein, Leminski Cachorro-Louco, Dalton Vampiro (referiam-se aos escritores Valêncio Xavier, Paulo Leminski e Dalton Trevisan). Trata-se de uma ficção que, em Curitiba, num espaço-tempo de duas décadas, concentrou-se uma prática de escrita de invenção, escrita monstruosa que em poucos lugares do mundo aconteceu. Por aqui armou-se um recorte voltado para uma linha criativa no interior da história da literatura. É, pois, de uma linha interna que surge um painel histórico, mais que isso, a participação decisiva de autores paranaenses com suas obras literárias surpreendentes que contribuíram para a consolidação desta tradição inventiva da literatura brasileira. Obras cujos procedimentos envolvidos lançam mão da poesia, da narrativa, da prosa poética, do ensaio e da imagem. A partir dos anos 1970, nas três décadas subsequentes à publicação de O Vampiro de Curitiba (1964), marcaram as experiências textuais de Catatau (1975), de Paulo Leminski, O Mez da Grippe (1981), de Valêncio Xavier e Mar Paraguayo (1992), de Wilson Bueno. Acumularam-se três obras fundamentais em um período extremamente concentrado. Por isso, simbolicamente, ainda deixam um altiplano e um desafio por vir para a literatura. Mar Paraguayo do amigo Wilson é parte disso.
Douglas Diegues, editor da YiYi Jambo Cartonera e um dos maiores difusores do “portunhol selvagem” (que mistura português, espanhol, guarani, et cetera), também destaca o legado do paranaense: “La nouvelle Mar Paraguayo, el papyro mais rarófilo de Wilson Bueno, expandiu la literatura brasileira para além das fronteiras da lusofonia. Agora la literatura brasileira non se limita mais a la língua estatal como Império. Depois de Mar paraguayo la literatura brasileira nunca mais foi nem será la mesma. Considero Mar Paraguayo uma das fontes de meu portunhol selvagem. E Wilson Bueno também admirava o fato de eu ter conseguido inventar meu portunhol selvagem sem imitá-lo.”
Bueno foi um dos mais inventivos escritores brasileiros (arriscou tudo em sua linguagem) e nunca pestanejou diante das limitações do público.
Um trecho de Mar paraguayo
“… mi desamparo seria menor acaso non houvesse a estas horas tan y tantas estos silêncios longos, diagonais del abismo:la octaêdra florita de consistência imortal: la persigo de paño y pañuelo: la consistência: el nudo vivo: microscôpica acentuación de que todo y qualquier puede embaralhar-se en una sola y mecânica agujada: fatal: la finco y finco: como quien espeta la justícia si tarda: un punto de finíssimo crochê: ñandu: ñandurenimbó: uno solo punto solitário e casi al lejo de la compreensión ocular ô humana: ñandu: puntos móveles: mijones mínimas a escapar del huevo por la línea fragíl de la telaraña: ñandurenimbó: evadindo-se mijones: hetaicoé: tendo de desarrojar-se todos hasta se cnsistan en arañas plenas: las patas: el cabeludo y h orrendo ser que lento vai sobre la mesa e puede que adentre a la manga de su camisa: ñandu-cavayú: ninguno capaz de deter-lhe el honorable veneno: ahora mijones evadindo-se del huevo para povoar después mañana el patio y la cocina: aún que haiga los muchos y los mijones sigo sozinha: y después arañas son arañas: ñandu: ñanduti:”
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* Extraído do texto Fronteras: En los entrecielos del linguaje de Wilson Bueno.