O jornalista esportivo Renato Pompeu, já falecido, cunhou uma definição rara: “o futebol não é um esporte, é um espetáculo dramático. Distingue-se de outros espetáculos – como o teatro, cinema e a televisão – por duas razões. Em primeiro lugar, não retrata um conflito entre personalidades, mas um conflito entre duas instituições que, no plano imediato, são os dois times. Em segundo, por não haver um roteiro prévio conhecido de seus ‘atores’. Os jogadores vão criando o enredo, a trama e o desenlace conforme suas decisões de momento”. Perfeito, já reproduzi isto aqui.
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Assim como o futebol, diferente de espetáculos com roteiro prévio, a vida igualmente se vale de tramas recriadas a cada instante, pois “tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo”. Na instável metáfora vida-futebol, nada mais exato que o imprevisível. A bola na marca do pênalti, você embaixo das traves ou tomando distância para bater… é indiferente. No momento seguinte os destinos de ambos serão reescritos – não apenas dentro das quatro linhas, mas também para mais adiante no tempo e espaço.
No último minuto da semifinal contra o San Lorenzo da Argentina, o goleiro da Chapecoense tomou emprestada a fama milagreira do adversário e pôs seu time na final da Copa Sul-Americana. Não, não cravou ali seu destino, mas rascunhou. Tivesse aquela bola morrido na rede, Danilo estaria vivo? Talvez, talvez…
Vida e futebol, um drama emaranhado em talvezes. Um tiro de meta mal batido prejudica o próprio time? Nem sempre, pode até resultar num tento a favor. Você, livre, desimpedido, de posse da bola a um metro da linha fatal do seu rival, é gol? 99,99%, sim. Mas 0,01%, não. O imponderável invariavelmente é escalado, o roteiro não tem dono, haverá sempre um episódio disposto a modificá-lo.
Naquela noite, o tiro à queima-roupa defendido por Danilo inicialmente reverberaria apenas pelas arquibancadas, cidade e noticiários esportivos. Hoje, surpreendentemente, feito tsunami, varre meio mundo, devasta corações, verte lágrimas, recria laços, exacerba emoções, espalha solidariedade, revisa valores… Este acaso tão específico, gerado por aquela defesa tão improvável – já por três dias motivo de choro, brados uníssonos e cantos pungentes – nos faz paradoxalmente voltar à vida de um modo novo.
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Em poucas horas o planeta vestiu verde e um simpático e relativamente modesto time de futebol ganhou as torcidas de todas as cores. Certo, Renato Pompeu, o futebol é um espetáculo dramático. Os jogadores vão criando o enredo conforme suas decisões de momento.
Assim, o espetáculo criado pelos atores da Chapecoense sob os refletores em 23 de novembro saltou dramaticamente para a vida.