Com sua licença, senhor, permita que o interrompa em seu momento-café? Seria inoportuno? Ah, obrigado! Agradeço a amabilidade em pelo menos me dirigir o olhar. Uma enorme valia! Obrigado. Sabe, doutor, acabo de receber pela grande mídia a notícia da sentença do tal ex, digamos, presidente. Não, não, meu caro, é desnecessário emitir qualquer opinião a respeito. Só estou aqui, com o cotovelo sobre o mesmo balcão, para, por assim dizer, celebrar o exorcismo ou ainda uma catarse anunciada, eu diria, prestes a completar década e meia. Falo por mim.

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Sim, é como me sinto. Com todo respeito ao seu silêncio, caro e paciente “interlocutor”, nem em meus mais recônditos devaneios ousaria adivinhar suas prioridades ideológicas, porquanto este seu mutismo, devo admitir, me põe algum desconforto n’alma. Mesmo assim, dado todo o histórico desse pseudopolítico incivilizado, com recorrentes pendores à mais ordinária das comédias, ao qual ora me refiro, é em verdade um maníaco, se me permite termo tão duro. Por isso preciso dizê-lo com todas as letras, ou palavras: estou vivendo meu alívio em desmesurada e confortante levitação. Desculpe, seu café está esfriando…

Decerto, meu bondoso, ao contemplar essa vida de gado que grassa furiosa sobre os alienados no país, bem sei que a sentença não nos libertará, no entanto, o tal conforto me habita, ainda que venham as togas de segunda instância. Curioso… agora seu olhar me trespassa. Minha verborreia o trouxe à realidade? Duvido. O mal está feito, amigo. “Não me queira mal”, costumava repetir um velho financeiro aos credores. Provavelmente, o senhor, meu amável e improvisado companheiro já saiba de tudo, não? É evidente, uma leitura superficial das manchetes bastam para nos pôr a par da irreversível miséria nacional. Mas há quem ame o cara. Sim! Sim! Também há os indiferentes à pesada desventura que nos legou. E os piores: os que não sabem que não sabem, segundo Chomsky. Deixam na mão de Deus. Veja só!

Diga lá, onde está a nação hoje? No global somos é nada. Nada! De que adiantam nossas poucas ilhas de prosperidade, ou mesmo de saber, no imenso lamaçal miasmático? Caso discorde, posso ser mais suave, meu senhor: grânulos de fino chocolate nadando em leite insosso, mas a mistura não interessa a ninguém. Nove anos e seis meses ao velhaco que matreiramente fez a leitura certa de incontáveis porosos. É pouco. O senhor não acha? Viu o discurso pós-sentença? Enfim, vejo que terminou seu café em densa caladura. O incomodei? Há quanto tempo estamos, digo, estou, aqui tagarelando? Preciso ir. Muito agradecido por ter me emprestado seu semblante impassível. Melhor! Assim nunca saberemos qual dos dois é o idiota.

Ah, o livro que carrego ao qual o senhor desvia discretamente o olhar? A Queda, de Camus. Leio-o pela quinta vez. A vida imita a arte. É o que sobra.

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