Vão longe os rústicos dias de verão em Armação de Itapocorói. O pedaço de orla, hoje tão modificado, no município de Penha não raro lota as lembranças de minha juventude. Água salobra bombeada manualmente, o fumegar acre das velas e do lampião que preenchia os cômodos, o denso breu das noites ventosas entrecortado pelo reboliço do bambuzal rente ao telhado, a vegetação à beira-mar crivada de rosetas, o tuc-tuc das baleeiras antes do nascente, o terno de reis na hora do jantar, os beliches em madeira crua…
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Ah, tinha o caricato alemão Otto que adotou Armação sem entender tchus de português, os passeios de lanterna pela areia depois do jantar, as algas, os ouriços, o peixe da rede para a frigideira, o vendedor – “ô, dona Maria!” – de goiá, a geladeira à querosene, puçá, caiaque, salgas, cascas de camarão atiradas ao mar, os personagens da região, o copo de pinga até a borda, a venda de secos e molhados, o zunido das cigarras se sobrepondo à rebentação suave, o aroma de aroeira e maresia, a primeira cerveja à sombra depois do mergulho…
Os veraneios nas casas mobiliadas com improviso daquela Armação agreste, de poucos recursos e acesso empoeirado, eram penetrados dessa poesia simples da qual só me dei conta mais tarde. Pouco sobrou. Hoje, de veias asfaltadas, as câmeras gravam tudo. O cheiro acre vem das caminhonetes, o zunido das lanchas abafa o tuc-tuc e os condomínios verticais já arranham o laranja-avermelhado no pôr-do-sol.
Em janeiro deste ano, no entanto, percebo num repente, à beira da avenida pavimentada, ladeada de muros intransponíveis, uma velha conhecida: a garagem-casa-de-praia do lendário chef Hugo Socher. Parecia um rosto triste e envelhecido a me olhar com suas enormes portas de molduras com vértices chanfrados, encimadas pelas duas modestas janelas do sótão. O capim lhes subindo pelas canelas e o meio-fio impedindo sua abertura para a rua davam à outrora originalíssima casa de divertidos encontros e muitas histórias um inequívoco semblante de choro.
Foi ali, meu caro e paciente leitor, que o mestre dos temperos, aquele que mudou para sempre a cozinha blumenauense, vindo de uma Alemanha em guerra, construiu um dos mais deliciosos e espartanos redutos para seus verões. Uma enorme garagem de paredes repletas de ferramentas que abrigava a barulhenta caminhonete Ford, uma escada que levava ao piso superior com duas ou três camas, a cozinha em treliças com vista para o longo terreno sombreado que terminava no mar, em frente à enorme Pedra da Fortaleza.
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Mas a vida solta sem compromissos acontecia mesmo no puxado aberto, mesa e cadeiras de palha, onde as garrafas de casco escuro, mergulhadas no poço e presas por barbantes, ficavam à mão dos convidados para óbvios camarões e seu insuperável Zwiebelkuchen.
Tivesse eu dinheiro, compraria e recuperava aquela garagem-casa.