Os fãs a chamam de rainha, musa, diva, força da natureza. Os inúmeros adjetivos atribuídos a Maria Bethânia são insuficientes para descrever com precisão o seu tamanho dentro da história da música nacional. Uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, ela traz a Florianópolis no próximo sábado, dia 2, o show em que interpreta grandes sucessos de uma trajetória iniciada em 1965 – oportunidade para ouvir, ao vivo, a voz que transforma em clássico tudo o que entoa, de canção romântica à sofrência sertaneja, de samba de roda à letra de protesto.

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Aos 72 anos, a baiana de Santo Amaro da Purificação não dá sinais de que vá parar tão cedo. De 2015 para cá, as cinco décadas de carreira foram festejadas com a intensidade e o ecletismo – ou melhor, a liberdade – que caracterizam as escolhas da artista. Além do show comemorativo Abraçar e Agradecer e a homenagem no Prêmio da Música Brasileira, houve a exposição Maria de Todos os Nós, o desfile na Sapucaí com o enredo A Menina dos Olhos de Oyá (campeão com a Mangueira), a série Prosa e Poesia (exibida no canal por assinatura Arte 1) e a viagem a Moçambique para a gravação do documentário Karinanga.

Assim é Bethânia: em uma época de exposição a qualquer custo e polêmicas rasas, ela consegue se envolver em várias frentes sempre mantendo a privacidade a salvo. Longe dos holofotes, é uma mulher que gosta de andar, de ver o mar, de ler e conversar com os amigos. Carnívora assumida, não toma nenhum cuidado específico com saúde ou beleza (“detesto essas obrigações”) e considera-se dona de um corpo muito “direitinho”.

É o máximo de intimidade que se consegue extrair de uma conversa por telefone, nesta entrevista concedida de um hotel em Salvador, onde está hospedada enquanto sua casa na capital baiana passa por reformas. Mas só escutar a entidade do outro lado da linha rindo ou lhe chamando de “meu bem” já é coisa para qualquer um dar o dia por ganho.

O que a senhora anda ouvindo ultimamente? Algum artista atual lhe chama atenção?

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Continuo ouvindo os meus eternos cantores e cantoras, nenhuma grande novidade. Tenho ouvido muito Chico César – porque é mais próximo, sei lá, tenho estado muito com ele e acho que ele vem fazendo um trabalho vigoroso, que é o que eu gosto como intérprete. E Chico (Buarque), como sempre; o show do Caetano com as crianças (os filhos Moreno, 44 anos; Zeca, 25; e Tom, 20, sobrinhos dela), Adriana (Calcanhotto), esses artistas que compõem para intérprete.

Chico César?!?!

Chico sempre compõe para mim. Somos amigos, conversamos muito. Ele é muito forte em tudo o que faz, é um excelente compositor. Ultimamente temos nos falado mais. Fizemos um show juntos comemorativo aos meus 50 anos de carreira no Prêmio da Música Brasileira (em 2015, com vários outros artistas que também a homenagearam). Convivemos muito mais de perto e daí quando vou fazer um trabalho eu normalmente consulto Chico César porque ele é muito estudioso, muito capaz, um conhecedor profundo da música brasileira e me dá excelentes ideias. E ele anda compondo muito, o que é muito bom. Tem feito livros de poemas, canções lindas, tem modificado o modo de tocar suas canções, quebrado um pouco com o estilo tradicional, e isso me interessa. Agora ele já me deu diversas canções, são todas lindas – certamente usarei no mínimo duas no meu próximo trabalho.

Qual a sua influência na música brasileira de hoje?

Olha, sou um pouquinho difícil (risos). Meu jeito de trabalho é tão diferente de tudo… Sou intérprete, tenho toda uma formação com diretores, cenógrafos, diretores de teatro, então isso cria uma diferença muito grande para o ‘normal’, para o que se costuma chamar de ‘cantora brasileira’. Não vejo ninguém com um caminho parecido com o meu. Mas, assim, em repertório, em escolha de compositores, aí eu vejo gente mais nova que gosta muito dos autores todos que eu venho cantando a vida inteira.

A senhora já gravou Zezé di Camargo & Luciano, Bruno & Marrone, enfim, artistas mais populares, que transitam por universos musicais diferentes do seu. Como faz essas escolhas?

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Sou muito livre, não tenho o menor compromisso em cantar somente MPB ou lírico ou brega ou sertanejo. Canto o que eu quiser, sou intérprete. E há alguns momentos desses compositores que você se refere que me tocam de alguma maneira. Tem uma alegria na maneira de compor, o jeito diferente que me interessa. A música É o Amor (de Zezé di Camargo & Luciano) eu gravei para o filme Dois Filhos de Francisco, o Breno (Silveira, diretor do filme, lançado em 2005) pediu para que eu fizesse. Eu adoro essa música e fiz – do meu jeito, com piano quase que erudito. Gosto de misturar, acho que é gostoso para o intérprete e interessa ao meu público.

Como foi a receptividade?

As pessoas têm um pouco mais de paciência quando sou eu que faço (risos). Quanto à crítica, não leio nem me interessa. Mas meu público – quem segue meu trabalho – gosta, acha diferente: ‘Bethania fez de tal jeito, fortaleceu tal frase’, por eu ser uma intérprete. Mas nada mais do que isso.

O que a senhora gostaria de fazer em música que ainda não fez?

Ah, mas tem muita, muita coisa, meu bem! Quem dera eu viver 10 encarnações para poder fazer a metade!

Alguma coisa específica?

Não, eu gosto de cantar o que me comove e o que sei que toca o coração das pessoas.

Quando a senhora percebeu que tinha “acontecido” como cantora?

Foi em 1965, logo quando cheguei ao Rio de Janeiro e substituí Nara Leão no show Opinião (espetáculo-manifesto que contava ainda com Zé Kéti e João do Vale, intercalava canções e narrações referentes à situação do país, então regido por militares). Já na minha noite de estreia como cantora profissional aconteceu exatamente isso que você está falando.

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Se fosse possível, a senhora faria alguma coisa diferente do que fez?

(Pensa alguns segundos) Não, não mudaria nada. Eu faria como fiz porque acho que foi a melhor maneira que encontrei para fazer. Cada momento é único. Posso cantar a mesma canção de outro modo, mas isso é natural porque não tenho mais 18 anos, 50 anos, então as coisas são na sua hora, daquele jeito.

Qual o segredo para se manter tão reservada em uma época de altíssima exposição?

Não penso muito nisso, é uma questão de educação, de temperamento. É meu jeito, sou interioriana e gosto de manter isso. Sou assim, a maioria destas coisas que acontecem não me interessa em nada. São coisas muito passageiras, muito voláteis, que não deixam rastro, não têm uma história. Acho que cada um de nós nasce para escrever a sua história. Mas também não tenho preconceito, apenas não me interessa.

Como a senhora avalia este momento em que a censura a certas manifestações artísticas vem ganhando força?

Isso é o maior desastre que pode acontecer a um país, ainda mais para nós que saímos há pouco tempo de uma ditadura militar miserável. Então temos que ficar muito atentos, ajuizados e cientes da responsabilidade de cada um.

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Houve um retrocesso?

Corremos um altíssimo risco de acontecer isso. As coisas que vêm acontecendo são gravíssimas. Se você olhar para dentro do Brasil… Eu tremo, é o país que eu amo, e o que eu vejo acontecer é de estremecer, assusta. Cada um de nós tem que pensar seriamente nisso.

A senhora imaginava que em 2017 teria que responder alguma pergunta sobre cerceamento à arte?

Sinceramente, não. Tive um irmão exilado (Caetano Veloso, em Londres, de 1969 a 1971), quase todos os meus amigos foram exilados. Sofri muito, como todo brasileiro, como qualquer pessoa normal com o mínimo de consciência. Jamais imaginei que voltaríamos a esse tipo de assunto, jamais. É muito triste para o Brasil ter que se falar sobre censura neste momento.

Como a senhora reage ao fato de ser venerada pelos gays?

Essa graça de dizer ‘Bethania rainha’, ‘diva’, ‘musa’, eu acho essas palavras muito delicadas, muito carinhosas, agradeço com meu coração comovido, mas… (pausa) Só vai até aí. Acredito no que eu sou.

Em julho de 1976, quando a senhora e veio com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa a Florianópolis para o show Doces Bárbaros, Gil acabou sendo preso com um baseado. Do que a senhora se lembra deste episódio?

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Sofremos muito, não foi pouco, não. Foi muito duro para o Gil, muito difícil porque era um período em que essas coisas aconteciam com ele. Toda aquela encenação, metralhadoras, invasões de quartos, inclusive de duas moças, o da Gal e o meu… Situações difíceis, mas são coisas muito do passado. Por isso é que temos que ficar atentos hoje para que esse pensamento sequer permaneça no ar. Tem que se pensar que Gil ultrapassou, que venceu, que se mantém como um dos maiores compositores do Brasil, extraordinário músico e um homem lindo, honrado, direito. Nós todos conseguimos seguir. Mas depois disse já voltei a Florianópolis por duas ou três vezes, fiz leitura poética e show. Fui recebida com toda a naturalidade, com o respeito devido, tanto da minha parte quando da parte de vocês.

Existe alguma possibilidade de vocês quatro se reunirem novamente para…

(Interrompendo) Ah, eu adoraria! Confesso a você que adoraria. Tenho muita vontade, fico inventando histórias, quero que a gente cante no show da (escola de samba) Mangueira, do qual já fomos enredo (em 1994)… Mas é difícil, cada um com uma agenda muito grande, muito diversa. Quem sabe? Milagres acontecem!

AGENDE-SE

O quê: show Grandes Sucessos – Maria Bethânia

Quando: 2/12, a partir das 20h

Onde: Centrosul (Av. Gov. Gustavo Richard, 850, Centro, Florianópolis)

Quanto: a partir de R$ 180 (pista – inteira), e nos casos de meia entrada a partir de R$ 90 (pista – meia). Ingressos à venda via Disk Ingressos