As manifestações contra o governo foram um sucesso. Despertaram a consciência cívica no cidadão de bem, fizeram a juventude redescobrir o gosto pela política, levaram milhões de pessoas às ruas de todo o país. Conseguiram. Botaram pressão suficiente para que o Congresso aprovasse o impeachment. Valeu a pena lutar – para derrubar Dilma Rousseff (PT). Destituída a presidente, o clamor por mudanças que colocassem o Brasil “no rumo certo”, seja lá o que isso signifique, arrefeceu ou simplesmente sumiu da pauta. Por mais que tudo indicasse que o conjunto da obra que levou à derrocada da petista iria permanecer ou até se agravar.

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Como em um passe de mágica, as ruas, antes cheias de revoltados com os desmandos vindos de Brasília, agora estão vazias. De um dia para outro, as panelas, convertidas em instrumentos que expressavam a indignação com a bandalheira cometida pelos ocupantes do poder, silenciaram. Bandeiras verdes e amarelas e camisetas da Seleção, outrora envergadas com-muito-orgulho-com-muito-amor, voltaram para aquele canto da casa onde são abandonadas as tralhas. Personagens que emergiram na proclamada onda moralizante que varreu o país (Janaina Paschoal, o pato da Fiesp et caterva) recolheram-se ao ostracismo.

Um observador extraterrestre que por acaso visitasse o país deduziria: claro, foi respeitada a Constituição e no lugar de Dilma entrou o vice, Michel Temer (PMDB), um nome com décadas de bons serviços prestados à coletividade, dono de uma reputação ilibada e experiente o suficiente para se cercar dos quadros mais capazes de tomar as medidas imprescindíveis ao futuro da nação. Para espanto do turista sideral, no entanto, o cenário que se desenrolou após a queda da mulher reeleita com 54 milhões de votos tem sido bem diferente. Quase nenhuma das expectativas otimistas em relação ao interino guindado à titularidade por 367 deputados federais e 61 senadores se confirmou.

Prestes a completar um ano da posse definitiva da presidência, Temer acumula marcas impressionantes – todas negativas. É o primeiro presidente da história do Brasil a ser denunciado por corrupção durante o exercício do cargo. Detém a pior avaliação desde a proclamação da República, sendo responsável por uma gestão considerada ruim ou péssima por 69% e regular por 23% dos entrevistados pelo Datafolha no final de julho. Conforme o Ibope, 81% desejavam que ele fosse investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas a Câmara aprovou o relatório da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que recomendava a rejeição da denúncia no último dia 2.

Nada disso – tampouco o apoio parlamentar abertamente negociado mediante liberação de verbas e loteamento de cargos, a reprovação da reforma trabalhista por 64% da população (Datafolha) ou os claudicantes sinais de recuperação da economia – foi o bastante para convencer os eleitores a exigirem a saída de Temer. A ausência de protestos reforça a sensação de que, no duelo de apelos, o “primeiro a gente tira a Dilma, depois o Temer” vem perdendo de goleada para o grande acordo nacional “com o Supremo, com tudo”, sugerido nas conversas grampeadas entre o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o ministro do Planejamento (hoje líder do governo no Senado), Romero Jucá (PMDB-RR), em maio de 2016.

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— Quem é a turma contra a reforma trabalhista? Os sindicatos, o pessoal da esquerda. Aí vem todo aquele repúdio da população ao PT. Não fomos para a rua porque concordamos com as medidas propostas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estava defasada e era inspirada no fascismo — alega o líder do Movimento Brasil Livre (MBL) em Santa Catarina, Ramiro Zinder, para justificar a passividade de sua organização.

Anabolizados pelo discurso anticorrupção, agrupamentos como o MBL, Vem Pra Rua e quejandos promoveram em 13 de março do ano passado a maior manifestação já registrada em Florianópolis. Naquele domingo, 98 mil pessoas (estimativa da PM) tomaram a Beira-Mar Norte pedindo a cabeça da presidente. Na opinião de Zinder, com a queda dela, questões associadas ao petismo que eram condenadas pelos participantes dessa passeata, como o “apoio a ditaduras”, não encontraram respaldo na atual administração federal, daí a calmaria.

– Além disso, o FGTS foi liberado e, com dinheiro no bolso, há uma desmobilização natural. Não somos cobrados para combater Temer. Também não acredito nessa baixa aprovação. As pessoas não vão dizer que gostam dele. Mas elas ficaram muito insatisfeitas com um governo de esquerda e não querem se unir a quem brada “fora, Temer”. Porque saindo ele, entra quem? Então elas estão preferindo esperar – diz.

A tese do líder do MBL catarinense – de que a repúdio generalizado ao PT supera os escândalos envolvendo Temer e aliados – pode ajudar a entender a timidez da reação popular contra o peemedebista, mas não dá conta do fenômeno em toda a sua complexidade. Para o doutor em Linguística (ciência que, entre outras atribuições, estuda o aspecto social e psicológico da linguagem) pela Unicamp e professor da UFSC Fabio Lopes, a situação atual reflete uma conjunção de fatores que remontam ao final do primeiro mandato de Dilma.

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— A coisa começou a desandar quando caiu o preço das commodities, que sustentaram o crescimento durante as gestões petistas, tanto de Lula quanto dela — contextualiza.

De acordo com ele, após as grandes manifestações de 2013, nascidas do movimento pelo passe livre, a narrativa do combate à corrupção foi se consolidando como o catalisador das ruas. No momento em que a presidente foi apeada, ocorreu “uma catarse, um êxtase coletivo, seguido por uma circunstância complicada: a percepção de que o assalto aos cofres públicos fazia parte da formação do Estado brasileiro”.

— Aí houve um sentimento de impotência, um desencanto muito grande. As pessoas olham Temer e acham ele um monstro, mas é o “nosso” monstro, elas se reconhecem nele. O lulismo destoava um pouco disso pelo campo de valores ligado a minorias, cotas, gêneros, questões étnicas. Mesmo a figura de Lula e sua entourage não eram o espelho em que a classe média e a elite se enxergavam.

Um dos colaboradores do livro Comentários a uma Sentença Anunciada: o Processo Lula, lançado nesta sexta-feira, o doutor em Direito, advogado e filósofo Alvaro Gonzaga, que leciona na PUC-SP, acredita que a população está passando por um anestesiamento e o debate político está se esvaziando. O descontentamento com o preço das passagens de ônibus parido há quatro anos em São Paulo – que, em Florianópolis, chegou a fechar a ponte Colombo Salles – foi canalizado para fins eleitoreiros, “com o sentimento antipetista travestido de necessidade de mudanças”.

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— Houve uma apropriação de pleitos legítimos por parte de um grupo político. O caráter dito apolítico de movimentos como o MBL é um mito, assim como a neutralidade. Quem se declara neutro é massa de manobra assumida — detecta.

A consequência, na ótica de Azevedo, foi o surgimento de um “estado de exceção em que o governo é apenas tolerado”, “um modelo de instabilidade que gera descrença nas pessoas”:

— Em vez de fazer reivindicações, elas se afastaram. O fato de lutarem contra algo sem ter algo a propor também contribuiu para esse distensionamento. No dia seguinte à aprovação da reforma trabalhista (11 de julho), Lula foi condenado. Esse tipo de “coincidência” confunde ainda mais a população: “Se eu for protestar contra a reforma, podem achar que estou reclamando da condenação de Lula”. Ou seja, tudo conspira para que não se ache o momento para voltar às ruas.

Que seria difícil panelas voltarem a ser usadas para outros finalidades que não cozinhar, era previsível. Os próprios incentivadores da transformação de frigideiras e caçarolas em símbolos do anseio por ética na política consentem que, consumado o impeachment de Dilma, os movimentos perderam a “causa” que os unificava. Restou a esquerda para, se não defender a manutenção da petista no posto, empenhar-se para que Temer não tivesse um instante de paz enquanto despachasse do Planalto. Não foi o que aconteceu e não há sinais concretos no horizonte de que vá acontecer.

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Tão logo o ex-vice tomou posse, até foi ensaiada alguma mobilização. Na primeira semana de setembro de 2016, três manifestações agitaram a capital catarinense. No último mês de março, mais duas – todas com adesão bem menor do que qualquer uma engendrada para derrubar Dilma. Em 28 de abril, um alento: a greve geral foi a maior da história do Brasil. Em 24 de maio, a batalha campal que virou a manifestação em Brasília sinalizou que o país entraria em convulsão. Mas ficou só na ameaça. Uma segunda paralisação total, em junho, já não angariou tantos simpatizantes.

— É que depois (de Brasília) o Judiciário começou a pegar mais pesado contra os sindicatos, aplicando multas escorchantes e processando os dirigentes. Também houve uma divisão das centrais sindicais, graças à ¿habilidade¿ do governo de chamar algumas – não todas – para conversar, acenando com a retomada do imposto sindical (um dos pontos afetados pela reforma trabalhista) — explica o integrante da direção nacional da Intersindical Central da Classe Trabalhadora, Amauri Soares.

Ex-deputado estadual pelo PDT, ele (hoje filiado ao PSOL) faz questão de esclarecer que a organização a qual pertence é contra o referido tributo, a investidura sindical (obrigatoriedade do registro do sindicato no Ministério do Trabalho e Emprego para que seja reconhecido) e a unicidade sindical (existência de apenas um sindicato para cada categoria). Ainda assim, o estrago estava feito, cristalizando em parcela da opinião pública a imagem de que os sindicatos estão preocupados somente consigo mesmos. Além disso, há a eterna briga das esquerdas.

— Quando Lula foi condenado, o PT convocou um ato de defesa a ele que na verdade serviu para lançá-lo à presidência. Achamos a condenação dele seletiva e arbitrária, mas não vamos participar de um ato em prol de sua campanha.

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A divergência corrobora o que o professor Fabio Lopes diz em tom de provocação, embora tenha lá seu fundamento: os protestos estão rareando porque nenhum dos lados quer a derrubada de Temer. A direita, por ser parte de seu governo. A esquerda, por preferir que ele “sangre” até 2018, abrindo caminho para retomar o poder. Pragmatismo à parte, Soares afirma que as mobilizações devem voltar, desta vez com a defesa de direitos adquiridos – vem aí a votação da reforma da Previdência – como protagonista, com demandas como “fora, Temer” em segundo plano.