Em meio à busca por representatividade, mulheres de Blumenau tiveram de passar por situações humilhantes, machistas e misóginas durante a corrida eleitoral de 2020. Candidatas que, ao tentar apresentar as propostas à comunidade, ouviram de diversos homens que só ganhariam o voto deles se em troca fizessem sexo ou os beijassem. Ameaças, piadas e assédios fizeram parte do dia a dia delas.

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Na cidade em que apenas 18% dos votos para vereadores foram destinados às mulheres, parte das mais de 100 que se dispuseram a entrar na disputa vivenciaram situações desanimadoras. Os assédios ocorreram na maioria das vezes por mensagens, mas também pessoalmente, principalmente quando elas saíam sozinhas para fazer campanha.

— Foi bem pesado. Minha alegria era chegar sexta, sábado e domingo, que era quando meu pai ia comigo, aí os homens respeitavam mais. Cuidei muito o que vestir, apesar de que temos de ser respeitadas independentemente da roupa, mas não é isso que acontece — conta Ana Paula Quevedo, que se candidatou pelo PL.

A reportagem ouviu três candidatas de Blumenau e uma de Gaspar, que foi eleita com o maior número de votos. Franciele Back (PSDB), diferente das colegas da cidade vizinha, não lembra de nenhum episódio de assédio, mas revela que muitas vezes ouviu “brincadeiras” de homens que disseram que ela deveria tentar uma vaga na Câmara Mirim — uma referência ao 1,55 metro da vereadora que irá para o segundo mandato.

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Andressa Estevão (PSDB) perdeu as contas de quantas mensagens de cunho sexual recebeu durante os 45 dias de campanha. Ela tentou uma cadeira na Câmara de Blumenau pela primeira vez, assim como Ana Paula Quevedo (PL) e Manoella Back (PSOL). Juntas, somaram 887 votos e não conquistaram a vaga. 

Apesar das diferentes linhas ideológicas dos partidos que representam, todas tiveram momentos semelhantes de medo, raiva e insegurança.

— Você se sente desprotegida. Nós temos os nossos direitos e temos que nos defender, porque depois se acontece algo viramos apenas números. Deu de suportar esse tipo de comentário — desabafa Andressa.

“Vai caçar marido”, “giro no meu quarto”, troca de sexo por voto. Assédio e machismo durante a campanha em Blumenau. (Foto: Arquivo Pessoal, cedido ao Jornal de Santa Catarina)

Os relatos

“Fiz a minha campanha inteira de calça e camiseta, até nos dias mais quentes. Mesmo assim ouvi: “só vou votar porque tu é gostosa”, “me passa teu telefone”, “se me der um beijo eu voto em ti”, entre outras coisas. Teve um senhor que me perguntou na Rua XV de Novembro se meu pai não me ensinou que lugar de mulher é na cozinha. Teve outro que me ligou e disse que estava fazendo campanha para mim, mas que queria me ver pessoalmente e que eu não deveria levar ninguém junto. É nojento. Tiveram dias que eu não tinha vontade de sair de casa. A gente tem que lutar, tem que conquistar nossos espaços, mas depois disso tudo me questiono se consigo passar por isso de novo. Será que vale a pena?”, questiona Ana Paula Quevedo (PL), 27 anos.

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“Fui a uma empresa e abordei um grupo de homens, pedi licença e falei que era candidata, se poderia apresentar minhas propostas. Ouvi: “não me interessa o que você tem para falar, mas vou votar em ti porque tu é muito bonita e gostosa”. Na internet, toda vez que eu fazia interação com os eleitores eu recebia mensagens de homens me chamando para sair, para ir à casa deles, à cama deles, dizendo que sou bonita, gostosa, perguntando sobre meu corpo. Foi desanimador, pesado, tive medo de verdade, fiquei muito triste. O pior é que isso acontece em todos os lugares, só que a gente não tem o hábito de falar. Não considero isso normal”, afirma Andressa Estevão (PSDB), 27 anos.

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“Minha campanha foi 99% online por conta da pandemia. Fui atacada o tempo inteiro por ser mulher e jovem, e por ser minha primeira candidatura em um partido que tem posicionamentos fortes. Recebi ofensas por minha aparência ou conduta pessoal e profissional. Em vez de questionarem minhas propostas, diziam que eu tinha que buscar um marido, duvidavam que tinha pós-graduação. Foi uma campanha pesada em termos de ofensas. Não tem como dizer que não afeta. Afeta, mas momentaneamente. Estou convicta das minhas pautas, não tenho por que esmorecer”, diz Manoella Back (PSOL), 28 anos.

Mudança cultural

Apesar de a reportagem chamar os episódios de assédios, com base no sentido figurado descrito nos dicionários, para a lei o crime não é identificado assim, já que não há condições hierárquicas envolvidas, diferente de assédios cometidos por chefe contra funcionária, por exemplo. 

Mesmo assim, o delegado da Delegacia da Mulher em Blumenau, Felipe Orsi, explica que identifica, a princípio, dois delitos nas atitudes narradas pelas candidatas: a corrupção eleitoral e a injúria.

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A corrupção eleitoral é quando alguém pede alguma vantagem em troca de votos. A grande dificuldade nesses casos é demonstrar se realmente houve a intenção de vender a escolha ou se não passou de uma “piada”, detalha Orsi. Já a injúria ocorre pela ofensa à dignidade da mulher.

— De fato não é fácil comprovar. Se ele fez uma proposta séria ou demonstrou que queria levar isso adiante, dá para comprovar com o próprio testemunho da candidata. A mera proposta já configura crime [de corrupção eleitoral] — aponta Orsi.

Em todos os relatos a atitude das vítimas foi semelhante: algumas respostas mais duras aconteceram, mas no geral elas preferiram ignorar ou bloquear a pessoa nas redes sociais. Ninguém quis, em meio à campanha, levar as histórias à delegacia.

— A questão é cultural. A lei nesse caso não tem força suficiente para coibir esse tipo de ato. A percepção penal ajuda, sim, mas é mais uma mudança de concepção — avalia o delegado.

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Reduto conservador 

Mudar posturas machistas não é algo que acontece de um dia para o outro. Para a professora de Sociologia Política da Furb, Luciana Butzke, a educação é o principal caminho, mas já que em escolas o assunto não há espaço permitido, a responsabilidade deve ser abraçada pelas universidades. Além disso, não silenciar em situações como essas também é um passo importante.

— Tem que responder à altura, porque à medida que elas escutam ou leem e não fazem nada isso dá mais espaço para os machistas e misóginos continuarem — afirma a professora.

Luciana acredita que os obstáculos relacionados ao gênero que as candidatas enfrentaram é também um reflexo da “vocação conservadora” de Blumenau. A cidade não elegia uma vereadora há mais de dez anos. 

Das 164 cadeiras já ocupadas no Legislativo blumenauense desde 1982, apenas sete foram por mulheres. E, apesar da eleição histórica, as duas novas parlamentares não defendem pautas consideradas feministas.

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— É claro que mulheres ocuparem esses espaços públicos é algo importante, independente das pautas, mas não acredito que por serem mulheres terão visões mais críticas sobre determinados assuntos — lamenta a professora.

Mulheres na política 

Apesar da frustração, as entrevistadas reconhecem que o que passaram deve servir de inspiração para que a luta por respeito e representatividade política seja ainda mais fortalecida. Há muito o que avançar, lembra Luciana, mas as pequenas vitórias não podem ser ignoradas. Silenciar não é uma opção.