A partida entre Brasil e Bolívia na Arena das Dunas, pelas Eliminatórias da Copa, entraria para a história do futebol nacional. Não pelo placar de 5 a 0, natural quando os pentacampeões mundiais enfrentam ao nível do mar um time cujo maior craque é a altitude. Nem pelo protagonismo de Neymar, que entrou em campo com o cabelo descolorido, marcou o 300º gol da carreira aos nove minutos e levou um amarelo por reclamação. Muito menos por representar a terceira vitória consecutiva da equipe sob o comando de Tite. Naquela noite de 6 de outubro de 2016, em Natal, estreava o mascote que iria impor respeito, assustar os adversários e – se não, não seria brasileiro – inspirar infinitas piadas.
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Um canarinho.
Mas não o mesmo que levou o radialista Geraldo José de Almeida a apelidar a Seleção devido ao amarelo da camisa adotado a partir de 1953 para esconjurar o branco envergado três anos antes no fatídico Maracanaço. Depois do vexame de 2014, saído das quatro linhas para virar alegoria de tudo de errado que há no país, mostrar um semblante amigável seria, no mínimo, demonstração de descolamento da realidade. Por alguma rara conjunção astral, o marketing captou o espírito da época – o zeitgeist, como diriam os (olha eles de novo!) alemães – e tascou-lhe o cenho franzido e o olhar irritado. A internet se encarregou do resto. No caso, o batismo informal fadado à posteridade.
Prazer, Canarinho Pistola.
A CBF, dona dos direitos do mascote, até tentou proibir o sobrenome, sinônimo de irritado na gíria atual. “Enfezado”, determinou em troca. Aí, quem se injuriou foi o próprio Pistola. “Enfezado o c*”, reclamou com a fina educação que trouxe do ovo. “Isso só pode ser ideia de filho de chocadeira!” Para variar, o Canarinho está certo. Ainda que mande e desmande no nosso futebol, a entidade não tem domínio nenhum sobre o sentimento consagrado pela população convertida em torcida.
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A indignação coletiva dos brasileiros se reconhece e se redime na figura de quase dois metros de altura vestida com o uniforme da Seleção. Primeiro, por se inserir no clima festivo da Copa do Mundo sem para isso virar um bobo alegre, que finge não ver o 7 a 1 sofrido a cada dia. Segundo, por mais paradoxal que pareça, por não levar nada tão a sério. Inclusive – e principalmente – a agressividade sugerida pelo Canarinho Pistola. Seu carisma involuntário é o maior antídoto contra tempos de ânimos tão acirrados.
O ódio dele não rima com intolerância ou demais manifestações – essas sim, odiosas – de estupidez que movimentam as redes sociais. É um ódio-raiz, ódio-moleque, ódio-arte, que nos une e nos define como Nação. Não gostamos das mesmas coisas. Mas, com certeza, temos vários desgostos em comum, traduzidos em humor e presença de espírito, nunca por violência. O tipo de comportamento que faz você estar tirando sarro de qualquer coisa relacionada à Bélgica.
E também rir da Seleção se a derrota vier (toc, toc, toc), ainda que por culpa do juiz ou do VAR, burro como todo o vídeo-tape. Diante de tanto fair-play, o mistério que cerca o Canarinho Pistola – descobrir sua identidade, o segredo mais bem-guardado do Brasil – é o de menos. Seja quem for, ele já é o grande vencedor da Copa.
O nascimento do Canarinho Pistola (Texto: Zé Dassilva)
Eu vi o Canarinho Pistola nascer. Estive no Mineirão naquele fatídico 7 a 1 e testemunhei: a cada comemoração da Alemanha, o ovo dava uma trincada e o bichinho tirava mais um pedaço da casca. Uma vida que brotou junto dos primeiros palavrões, quando os alemães fizeram 1 a 0. No segundo gol, torcedores brasileiros do meu lado expulsaram o alemão que bebia com eles. No terceiro, um dos stewards (aqueles assistentes de torcida, que usam colete fosforescente), treinado para acalmar o pessoal, ficou descontrolado e, de dedo em riste, começou a xingar os jogadores. No quarto, virei pro meu amigo em busca de respostas e ele fechou a cara, agressivo: “Tá olhando o quê?”. No quinto, minha filha ligou chorando e eu não fui gentil como costumo ser. Foi indo assim até que, aos 90 minutos, a casca enfim havia cedido por completo e o mascote estava livre para abrir o bico pela primeira vez. Em vez de gorjear, olhou praquele cenário de devastação e resmungou: “Que lixo, hein?”.
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Mas, sem identificação junto ao público, nenhum personagem sobrevive. Ainda mais um criado por uma entidade: tem sempre jeito de ser algo “chapa-branca”. Principalmente se for uma entidade tão criticada como a CBF: quem quer se associar às denúncias de corrupção? Mas foi exatamente deste ninho que o Canarinho Pistola se atirou para voar rumo ao abraço do povo, gritando: “Me segura aí, cambada de infeliz!”. E não é que a torcida, sem preconceito, acabou por adotá-lo? Um parente distante havia virado música em 1982, com Voa, Canarinho, Voa, um samba cantado pelo camisa 6 Júnior – mas não havia nenhuma “imagem oficial”.
Mas por que o Canarinho Pistola deu certo? A resposta está dentro de você! Vai dizer que não anda de saco cheio com um monte de coisas que lê por aí? O clima nacional é de indignação e o personagem resume isso. A identidade do brasileiro como “homem cordial”, só para citar Sérgio Buarque de Hollanda, parece entrar em um novo momento. Este rosto bravo a gente já fez por vários motivos que têm a ver com o fato de torcer pelo Brasil, dentro e fora de campo. “Não sou um mascote, idiota: sou uma ideia!”, poderia se definir o Pistola.
O mais irônico é que, de todos os motivos que temos para estarmos “pistola”, a campanha da Seleção é o menor deles. Afinal, nestes quatro jogos marcamos sete gols e tomamos apenas um. Ops, deu 7 a 1! “Não faz essas contas com coincidência que dá azar, animal!”, diria o Canarinho Pistola ao ler isso.
Mas será que não estamos sendo manipulados? O Canarinho Pistola é de direita ou de esquerda? Capaz de ele responder: “Sou do ataque, imbecil!” E nesse confronto contra a Bélgica, pelas quartas de final? Será que vai ter pena do seu primo, o canário belga? “Quero mais que ele se exploda”, diria a ave que reunificou o Brasil.
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