A fotografia em que Ney Matogrosso e Mart’nália se beijam na boca, recebida com muita festa nas redes sociais, deve ter causado certa confusão na cabeça de Marco Feliciano. Outros artistas importantes também beijaram na boca como forma de protesto: a grande Fernanda Montenegro beijou sua professora de interpretação Camila Amado e as não tão grandes Ana Hickmann e Luciana Gimenez também deram um simpático selinho, mas o beijo mais doidão é o de Ney e Mart’nália. Não é pra menos.

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Digamos que a filha de Martinho da Vila seja a mais homossexual das cantoras homossexuais brasileiras – há uns anos, Mart’nália chegou a dizer, em entrevista ao jornal O Globo, que se encontrarem calcinhas em seu armário é porque “alguém esqueceu, pois ela só usa cuecas”. Por sua vez, Ney é daqueles gays tão incríveis que faz a gente ter pena de ser hétero.

Mesmo sozinhos, com sua música, ambos já eram capazes de confundir o suficiente a cabeça das pessoas. Tornou-se inesquecível, por exemplo, a performance andrógina de Ney Matogrosso na TV Tupi, ainda no começo da década de 1970, quando não conseguimos saber se o cantor é homem, mulher ou algum bicho – o corpo repleto de signos masculinos não combina, digamos, com a maneira de dançar, só pra ficar no mais óbvio.

De fato, o grupo Secos e Molhados mostrou algo que, mesmo depois de quase 40 anos, ainda não foi totalmente compreendido na sociedade e na música brasileira. No fim da década de 1990, ao gravar a canção de Erasmo Carlos, Mesmo Que Seja Eu, paradigma do homem macho, Ney provoca uma ambiguidade parecida, só que agora na letra:

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“Mesmo que seja eu / Um homem pra chamar de seu”, diz os últimos versos. O que significa dizer “um homem” aí? Com Mart’nália a história é diferente. Negra e 25 anos mais nova que Ney, a cantora cresceu na Zona Norte do Rio de Janeiro, sobretudo em rodas de samba, ouvindo seu pai tocar reco-reco e indo dormir com Clara Nunes cantando na sala de sua casa.

Pra resumir, parte da trajetória de Mart’nália consiste em se apropriar ironicamente do estereótipo do malandro carioca, que tem uma história de mais de 100 anos contada por homens – desde, pelo menos, o romance de Manuel Antônio de Almeida, publicado no século 19, passando pelos sambistas Wilson Batista e Zeca Pagodinho, o “bom malandro”. Na entrevista mencionada, Mart’nália posa vestindo um terno Alberto Gentleman, usado no casamento do sobrinho, onde foi madrinha – provavelmente com a condição de não usar vestido. Um dos discos mais importantes da cantora chama justamente Menino do Rio.

Mas voltemos à fotografia do beijo – que, aliás, não é apenas uma fotografia, e sim uma espécie de encontro explosivo entre duas tradições. Além da história de Ney e Mart’nália, há ainda dois aspectos da cena que chamam a atenção. Como se pode notar, a cantora aparece seminua, com os seios de fora, porém cobertos pelas mãos de Ney, que parece feliz. O fato de Ney cobrir e ao mesmo tempo pegar nos seios de Mart’nália é um gesto que torna a cena ambígua: atrevida e ingênua, enfática e casta, enfim, provocativa, mas delicada.

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O segundo aspecto é que tudo parece casual na imagem, desde o enquadramento até o cenário, o figurino ou a falta dele, afastando de sua leitura qualquer hipótese sensacionalista – diferente das outras imagens de protesto contra o pastor, esta foi realizada em maio de 2012. Por fim, talvez o mais importante, é a eficiência de sua mensagem. Com mil palavras, ela diz que Feliciano não nos representa.