Quando era criança, Geovan da Conceição não sabia que as pessoas podiam ser felizes. A vida era apenas sobreviver, cada dia da mesma forma, e pronto. As pernas serviam para caminhar pelas ruas da comunidade do Citéx, em João Pessoa, e levá-lo até outras casas para pedir comida. Se não conseguisse, dormia com fome. Antes mesmo de completar sete anos, os olhos já tinham visto mais violência do que muita gente encontra na vida inteira. Foi quando o Conselho Tutelar entrou em ação e o encaminhou para um abrigo de meninos, a Morada do Betinho, mantido pela Prefeitura de João Pessoa.

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— Minha mãe, minha avó e meu tio eram alcoólatras e brigavam o tempo todo. Eu ficava na rua porque preferia isso do que ficar em casa. Mas, na rua, também apanhava dos traficantes. Eu tinha quatro, cinco anos, quando comecei a sair da comunidade para pedir comida e dinheiro para ajudar em casa — recorda ele.

Em 2 de maio de 2003, os olhos de Geovan encontraram a beleza do mundo, e nunca mais quiseram olhar para o outro lado. Era uma sexta-feira, e os meninos da Morada do Betinho foram orientados a vestir as melhores roupas para ir ao teatro. Eram quatro horas da tarde, quando ele entrou ao lado de outras crianças de escolas públicas no teatro do Espaço Cultural José Lins do Rego para assistir à I Mostra Didática da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil. Quando saiu, já sabia o que queria fazer pelo resto da vida.

— Eu me interessei de forma instantânea quando vi outras crianças dançando. Via a postura dos meninos, os movimentos, e pensei: quero isso para a minha vida — conta.

Aos 10 anos, Geovan rezou. Não sabia como, mas tinha certeza de que um dia estaria entre aquelas crianças, usando uniforme branco e preto e estudando em uma escola com um nome bonito. Deixaria de ser estatística — mais um menino sem casa e sem futuro — para transformar-se em alguém que faria a diferença.

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— Eu não queria que as pessoas me vissem com pena, como um pobre coitado. Eu queria ter relevância no mundo — recorda.

foto mostra geovan aos 10 anos com uniforme do bolshoi
Geovan morou com outras crianças no período em que estudou em Joinville (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando sonhos se realizam

Em algum lugar, alguém deve ter ouvido. Uma semana depois, a professora de educação física Conceição entrou na sala de aula do colégio em que ele estudava para contar que a Escola Bolshoi Brasil ainda estava em João Pessoa, fazendo audições para novos alunos.

— Os meninos da sala ficaram fazendo piada, então eu fiquei com vergonha de levantar a mão. Depois, pedi para ir ao banheiro e fui até a professora para pedir que ela fizesse minha inscrição — lembra.

Geovan passou no primeiro teste. Passou no segundo. Viajou até Joinville, e fez mais testes. Um dia, uma carreata liderada pelo então prefeito de João Pessoa chegou no portão do abrigo de meninos chamando por seu nome para entregar uma folha de papel. Ela dizia o que, no fundo do coração, ele soube desde que viu o Bolshoi pela primeira vez: seria um bailarino formado pela maior referência em dança do mundo.

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Entre 2004 e 2011, o menino de João Pessoa viveu em Joinville e cresceu em uma casa que abrigava outras seis crianças da mesma cidade, financiadas em parte pelo Governo do Estado da Paraíba, em parte pela Prefeitura de João Pessoa, sob a tutela da funcionária pública aposentada Niedja Amorim de Andrade. Ganhou uma "casa" e uma família e, mais do que isso, ganhou um propósito de vida.

Por oito anos, viveu a rotina de dividir os dias, de segunda a sexta, com a escola regular em um período e o Bolshoi em outro. Teve aulas de balé, dança contemporânea, danças populares, flauta, piano, coral, teatro, ginástica e história da dança. Quando o fim do ano chegava, tinha Vladimir Vasiliev, considerado o “Deus da Dança no Século 20” e a estrela do Bolshoi, Ekaterina Maximova, à sua frente como um dos avaliadores.

Aos 18 anos, Geovan sabia que agora suas pernas podiam saltar, rodopiar e transmitir emoções. Os olhos podiam enxergar um futuro sem limites. E que ele podia, com um diploma de bailarino profissional formado pelo Bolshoi, ir para qualquer lugar. Então, com o diploma nas mãos, voltou para João Pessoa e pode curar as feridas da infância.

— Quando trouxeram ele para mim, eu nem reconheci que era meu filho — conta a mãe, que continuava vivendo na mesma casa, no Citéx.

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Geovan não parou.Foi estudar licenciatura em Dança na Universidade Federal da Paraíba e se formou com o diploma de Láurea Acadêmica de melhor aluno da turma. Virou professor do Centro Estadual de Arte da Paraíba e de um colégio particular de João Pessoa. Hoje, aos 27 anos, conseguiu que a casinha de pau a pique da mãe virasse um lar com paredes de tijolos e piso no chão.

Casou e vê, do outro lado do país, o aniversário de sua antiga casa com a primeira filha, Valentina, no colo e a certeza de que a vida da menina será bem diferente da que ele viveu na infância, como uma única semelhança: a dança não será uma surpresa encontrada por acaso, como uma tábua de salvação, mas uma forma de sempre celebrar as belezas da vida.