De longe, o show de Bob Dylan na Capital, em abril deste ano, foi a confirmação de um clichê: arranjos irreconhecíveis, interação quase nula com o público, voz gutural.

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A poucos metros do palco, porém, não era preciso boa vontade para se emocionar, balançar o corpo com Dylan e até acompanhá-lo enquanto cantava – ostentando um inesperado sorriso – as melodias subvertidas de seus clássicos.

Tempest, disco que ele lança hoje, é assim. De longe, um conjunto de standards dylanescos que pouco surpreendem. De perto, um trabalho vigoroso e apaixonado.

Aos 71 anos, Dylan lança o 35º álbum da carreira. Se tivesse estreado em disco ainda bebê, precisaria ter mantido periodicidade bienal ao longo de toda a vida para atingir a marca – e ainda seria um compositor prolífico. Mas ele começou aos 20 anos e, mesmo na última década, após completar 60, seguiu lançando material – trabalhos regulares, em sua maioria. Tempest é melhor do que todos eles.

Folk, blues e rock demarcam o loteamento eclético dos 68 minutos do disco – à venda também como um LP duplo, um dos motivos para críticos empolgados terem-no comparado ao clássico de 1967, Blonde on Blonde. Produzido por Dylan, Tempest alcança uma sonoridade profunda em que mesmo a voz debilitada do cantor funciona. E segue, visceral, cantando histórias de amores e tragédias reais.

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O disco se inicia com faixas estradeiras: a pitoresca Duquesne Whistle, quase um jazz dos anos 1930, e a acelerada Narrow Way, que lembra as primeiras empreitadas elétricas de Bob, como Maggie’s Farm (1965).

Nessa arrancada solar, há lugar para paixão, representada pelas baladas Long Wasted Years e Soon After Midnight. A escritora Paula Taitelbaum relatou, em seu blog da L&PM, o encontro de sua filha com o ídolo Dylan – acompanhado -, em uma noite agradável no Parcão. A sensação que se tem ao ouvir Soon After Midnight é que a faixa poderia ter nascido nesse contexto: uma caminhada romântica pelo parque em uma cidade improvável no sul do Brasil.

Em Early Roman Kings, ele evoca blues clássico e avisa: “Não estou morto, meu sino ainda toca”. Na roqueira Pay in Blood, o tempo começa a fechar, e em Scarlet Town, o riff sombrio do banjo e o violino fúnebre denunciam a espreita dos urubus. É a transição para o trágico lado B do segundo LP de Tempest. Na sequência final, a monumental Tin Angel – nove minutos que culminam em assassinato e suicídio – prepara para a faixa-título. Sua influência celta sugere o balanço de um barco, mas a letra de 45 versos narra o naufrágio do Titanic.

A derradeira Roll on John homenageia Lennon. O tributo de Dylan é uma balada folk tocante, com a letra quase piegas de quem não se censura ao lembrar de um amigo. Evoca o lendário vídeo em que Bob, eletrificado, e Lennon, aéreo e cáustico, conversam e passeiam de táxi por Londres em 1966. Quando a tormenta de Tempest acaba, dá para ouvir o uivo do vento. E fica a torcida para que o sino de Dylan continue a badalar.

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