Nos anos 1960, Bob Dylan foi aclamado como herói pela nova esquerda americana e chamado de comunista pela velha direita. Em 1965, ao eletrificar sua música, foi hostilizado aos gritos de traidor pelos puristas do festival folk de Newport. Nos anos 1980, ao trocar o judaísmo pelo cristianismo, Robert Zimmerman foi tachado de volúvel. No Natal de 2009, aos 68 anos, ele quer ser chamado de bom velhinho.

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Dylan não chega a trocar seu ar reticente e carrancudo por uma gostosa e sonora risada “Ho, ho, ho”, mas o CD Christmas in The Heart é um disco desarmado, sem maiores intenções que não o culto à infância feliz, à fraternidade dos povos, à música como ferramenta de congraçamento. Isso não quer dizer que Dylan tenha abdicado de suas convicções: toda a receita obtida com a venda do CD será doada a organizações de caridade para pessoas carentes dos EUA, da Grã-Bretanha e de 80 países pobres. Além disso, a única entrevista que o cantor deu sobre o lançamento foi para a revista The Big Issue, comercializada por pessoas sem-teto.

A grande questão, entretanto, são mesmo as 15 músicas que Bob Dylan interpreta com sua voz grave e cavernosa – e, mesmo assim, surpreendentemente afetiva. Apesar de sua infância conduzida na fé e na cultura judias, ele preservou recordações dos natais em Duluth, no Minnesota: perus na mesa, cantadores indo de porta em porta, presentes embalados em papel colorido sob árvores natalinas perto da lareira, ingenuidade no ar.

Essas memórias acabaram guiando Dylan por um repertório que inclui Here Comes Santa Claus (de 1947, gravada por Bing Crosby e Doris Day), I?ll Be Home for Christmas (sucesso no disco natalino de Elvis de 1957), Winter Wonderland (de 1934, que já teve gravações de Ozzy Osbourne, Frank Sinatra e Johnny Mathis) e até Adeste Fideles, cantada parte em latim.

Dylan é conhecido por alterar sistematicamente os arranjos de suas composições – mas, em Christmas in the Heart, ele está lidando com algo mais sério e imexível: a memória infantil. Resulta que os arranjos são tradicionais, com direito a sininhos, xilofones e corinhos emocionados, no estilo das vozes de Ray Conniff, embora em uma ou outra faixa se ouça o acordeão mestiço de latino e de texano tocado por David Hidalgo.

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O espírito natalino de Christmas in the Heart fica claro no clipe de Must Be Santa. Depois de 12 anos sem aparecer pessoalmente em um clipe, Dylan topou usar uma peruca e encarnar um cantador que percorre altaneiro uma festa de Natal marcada pela alegria, desordem e non sense, como que saída direto de uma recordação do tempo em que até um menino judeu de Duluth acreditava em Papai Noel.

O CD Christmas in the Heart é bem isso: Bob Dylan voltando a ser criança. E só por isso ele pode ser chamado, de novo, de revolucionário.

Confira o clipe de Must Be Santa em www.zerohora.com/remix