Mais um Carnaval se aproxima. Já se ouve a batucada, a cidade está mais colorida, os foliões se preparam. As ruas do centro de Florianópolis se transformam em passarela. A Praça XV, na vitrine cultural. Nas últimas noites houve apresentação das escolas de samba. Na sexta, 2, o centro histórico vai ferver com as maricotas gigantes do Berbigão do Boca. Enquanto isso, os sujos aguaram o grande dia, o sábado de Carnaval. É como canta a marchinha: bloco de sujo não tem fantasia, mas traz alegria para o povo sambar.
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Na folia da Ilha – abarrotada de foliões do Continente – os sujos dão o ritmo. São sobreviventes das mudanças impostas pelos tempos, como falta de dinheiro, invasão de ritmos, aumento da violência. De modo espontâneo, alegre e democrático, simbolizam a vertente mais forte da festa momesca. É com eles que o folião experimenta a liberdade para expressar o humor e a irreverência que requer o Carnaval. Com algo que, especialmente em Florianópolis, virou tradição: homens se fantasiarem com roupas femininas – ainda que se exibam com barba, músculos, pernas e axilas peludas, usando salto, maquiagem e peruca.
Em entrevista à Agência Brasil, o antropólogo Roberto da Matta, autor do livro “Carnavais, malandro e heróis”, diz que nos Carnavais na Rússia de Catarina II, em 1700, isso já ocorria.
— É o ritual da licença, onde os opostos da sociedade rotineira se invertem. As mulheres podem se comportar como homem, caso dos destaques das escolas de samba. São supermulheres que os homens têm medo de chegar, castradoras de tão bonitas e agressivamente eróticas. Essas mulheres se transformam nos “dom Juan” de outrora — comparou.
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Para Du Meinberg Maranhão, da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e coordenação da Fogo Editorial, especializada em diversidade, a época é oportuna para a reflexão:
— O que há de transgressivo em “soltar a franga” em um bloco em que quase todos os homens estão vestidos de mulher? Nesse caso, não há desaprovação a formas satíricas de travestimento. Mas é possível que nesse momento de folia uma pessoa trans receba olhares reprovadores — observa.
Por isso, diz, transgressivo e revolucionário mesmo seria cair em outra folia, a da sensibilidade de gênero, no profundo respeito às mulheres e pessoas transgêneras e homossexuais. Afinal, não adianta se vestir de mulher e no bloco apalpar as mulheres, usar condições hierárquicas para oprimir e assediar.
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— Que tal no Carnaval e restante da vida nos vestirmos com a igualdade de gênero e que ela não seja só uma fantasia? — pergunta Du, que também é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Integrante do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC).
Na Desterro, limões-de-cheiro; na Florianópolis, a batucada
Assim como no resto do país, o Carnaval de Florianópolis iniciou com o entrudo português. Isso ainda nos tempos da antiga Nossa Senhora do Desterro, que vai mudar o nome em 1ª de outubro de 1894. Nos séculos 18 e 19, a brincadeira de jogar água nos outros com certa mistura era a grande atração. Mas por volta de 1850, a manifestação do que seria uma das primeiras festas populares sofreu com a imposição de regras. A intenção era fazer com que as brincadeiras não ferissem a honra das pessoas consideradas importantes da sociedade. O motivo eram os limões-de-cheiro, uma bola de cera moldada com limão ou laranja que levava em seu interior água e, em alguns casos, até urina. No livro “Carnaval da Ilha” (1997, Papa-Livro), de Átila Ramos, há uma descrição que mostra o efeito dos limões-de-cheiro. “A cena era sempre impagável: senhoritas e rapazes munidos de um grande arsenal tocaiavam alguma solene figura da cidade – o juiz, o contador, o presidente, o presidente da Câmara. E zás! – banho de limões na vítima. O enfatiotado logo perdia a cartola e a compostura”.
Com o passar dos anos se iniciaram os bailes e, inspirados no que ocorria no Rio de Janeiro, não se tocava samba, mas ritmos variados como polca, valsa, maxixe, tango. Até a década de 1930, tanto nos bailes quanto nas ruas era costume brincar o Carnaval com máscaras – influência francesa. Também com fantasias de origem europeia, como colombina, pierrô, arlequim. Na segunda metade do século 19 surgiram as Sociedades. A atração eram os carros de mutação que faziam movimentos mecânicos e que acabariam por dar origem aos carros alegóricos de hoje. Destacaram-se Granadeiros, Tenentes do Diabo, Limoeiros, Trevo.
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Nas primeiras décadas do século XX, o festejo tradicional passa a ser o corso carnavalesco: desfile de carruagens enfeitadas e depois com automóveis com capotas de lona rebaixadas. Os passageiros jogavam confetes, serpentinas e lança-perfume no público.
A pesquisadora Cristiana Tramonte em “O Samba Conquista Passagem” (Editora Vozes, 2001) escreve que os negros em Florianópolis começam a participar do Carnaval através dos ranchos, cordões e blocos. Mas, explica, a presença marcante e definitiva irá ocorrer a partir de 1940 com o surgimento das escolas de samba.
Praça XV, espaço de anônimos e famosos
Ao escrever o enredo “Praça XV: a essência do nosso Carnaval” (Morro do Céu, 2011), o também compositor Cesar Nunes, o Cesinha, lembra que até os anos 50 e 60, a festa era movida por canções feitas na Ilha e a concentração da folia no coração da cidade. Era também a época de ouro dos clubes, como Doze de Agosto, Lira Tênis Clube, 6 de Janeiro, Paineiras.
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— Na Quarta-Feira de Cinzas, os foliões do Doze e do Lira se encontravam na Rua Felipe Schmidt. Juntos encerravam a folia do ano, tendo como testemunha a centenária Figueira da Praça XV, que ainda hoje observa a folia.
A batucada, diz Cesinha, começou em 1936 com os primeiros blocos carnavalescos. A percussão era a novidade. O bloco Os Filhos da Lua, da Prainha, é considerado o mais antigo. Depois surgiriam Bororós, Tira a Mão, O Mocotó Vem Abaixo, Os Motoristas se Divertem, Os Palhetinhas (formado só por crianças), O Bando da Noite, Bloco da Base, Brinca Quem Pode.
O Bloco Bororós saía com 60 pessoas “vestidas de índio” e já utilizavam como acompanhamento os instrumentos. Os componentes frequentavam o Bar do Quido, na esquina da Fernando Machado, e dali saía o desfile oficial em volta da praça.
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— Inspiradas no Carnaval carioca, as escolas começaram a se organizar. Com isso, a folia da Ilha perde um pouco do sabor da singularidade que a construiu no entorno da Praça XV — explica Cesinha.
A festa passou a ser organizada em torno das escolas e transferida para outras regiões, como o aterro da Baía Sul – onde fica a passarela do samba. Mas a Praça XV continua sendo espaço onde nascem e se perpetuam personagens que marcam época, como o Rei Momo Lagartixa, Abelardo Blumenberg (o popular Avez-vous fundador da Copa Lord), Hélio Cabrinha (da Os Protegidos da Princesa), o famoso pandeirista Tenente, Juventino João Machado, o Nego Quirido (sambista que dá nome ao sambódromo) e a saudosa e eterna Cidadã Samba Erotides Helena da Silva, a Nega Tide, que começou a encantar os seus súditos no paralelepípedo do entorno da Praça.
Testemunhas da folia

Paulo Roberto Witoslawski tinha seis anos quando, pela primeira vez, viu o Carnaval de Florianópolis. Agarrado à mão dos pais, o menino experimentava sentimentos de curiosidade e medo frente aos mascarados. Mais tarde, iria se admirar com os risos e alegria dos palhaços no salão. Cresceria ao som dos clarins anunciando a chegada do Rei Momo, com os carros de mutação na frente do Palácio Cruz e Sousa, oferecendo flores para o governador, e com os tamborins das baterias – antes de gato; agora sintéticos – para se tornar uma das testemunhas da folia em Florianópolis.
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Hoje, com 64 anos, reúne um acervo de fotografias com a memória dessa trajetória que tem o Centro como palco. Numa delas, em 1976, Paulo Roberto toca seu instrumento de sopro em frente ao Ponto Chic. São registros de uma cidade transformada também visualmente. Mas onde seus moradores apaixonados pela folia tentam manter as raízes:
— Hoje, está mais difícil chegar na praça tamanha a multidão. Eu continuo vindo, mas fico com o Bloco Batuqueiros do Limão (o mais antigo e que se prepara para comemorar 50 anos em 2019) nas imediações — explica.
Com a experiência de quem conhece tão bem a folia da cidade, Paulo Roberto dá sugestões para que a festa não perca a essência:
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— Eu acho que todos podem brincar, mas penso que os ritmos poderiam ficar separados. Quem gosta de marchinha e samba num espaço, enquanto o funk e sertanejo noutro canto. Nesse caso, caberia à prefeitura cuidar dessa organização. Penso que a segurança iria melhorar — diz.
Festa em família

Carlos Livramento, o Dudu, é um distribuidor de medicamentos e material para laboratórios e hospitais na Grande Florianópolis, e André Couto, um publicitário. São dois entre os milhares de foliões que não abrem mão de sair fantasiados de mulher no Carnaval da Ilha. Para eles, não tem nenhuma conotação machista ou preconceituosa com relação a homossexuais:
— É uma brincadeira. Eu aprendi com meu pai. O Carnaval está no nosso sangue, pois meu avô, Pedro Alcântara, construía carros de mutação — conta, enquanto fecha os olhos para ser maquiado pela esposa, Sandra Azevedo, e se transformar no personagem que cai na folia no tradicional dia dos sujos no entorno da Praça XV.
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O costume de sair nos sujos envolve a família: a sogra de Dudu, dona Cida, é a costureira das vestes.
— No sábado de Carnaval a gente tradicionalmente marca um lugar para o esquenta. Nossas esposas e namoradas nos encontram depois, a força delas é muito importante: não tenho o menor jeito para colocar esse turbante de Carmen Miranda — brinca Dudu, enquanto tenta um lugar para fincar o galho de pêssego no acessório.
Mais discreto, André não tem uma fantasia definida. Sai como boneca, às vezes repreendida pela namorada, Simone Olivier, que dependendo do gesto o corrige:
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— Assim fica feio: faz como mocinha!