Que Roberto Carlos não gosta muito de biografias não autorizadas, todos já sabem. A surpresa – e a polêmica – da última semana foi ver Caetano e Gil engrossando o coro do Rei, organizados em uma associação que visa regulamentar a publicação de biografias. Oswaldo Mendes, biógrafo que ganhou o Prêmio Jabuti em 2010 por Bendito Maldito: uma biografia de Plínio Marcos, debate o assunto em entrevista por e-mail:

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O que aconteceu com Caetano, Gil e Chico Buarque, artistas censurados no passado, e que agora integram esse movimento?

É triste que, ao passar o tempo, as pessoas não zelem pela sua biografia, pela sua história de vida e, por mísero metal, entram nessa jogada que tem como mentora uma empresária, a Paula Lavigne, que por ter sido casada e cuidado da carreira do Caetano se acha, ela mesma, artista. Pode ser que seja, mas não conheço a obra musical ou literária dela. As notícias dão conta que ela é ótima advogada. Está provando que é. O absurdo desse “movimento” (será que eles vão sair às ruas?) é tamanho que cito um caso contado em Frankfurt pelo Ruy Castro, publicado em O Estado de S. Paulo: “Recentemente, um artigo sobre um assunto qualquer trazia uma citação de Roberto Drummond como epígrafe. Somente uma citação para ilustrar o texto. Pois a viúva do escritor exigiu que se tirasse a frase do marido por não concordar com sua utilização”. Se isso não é censura, me digam o que é. A propósito, dizem que Chico Buarque está em Paris concluindo seu novo livro, para alegria de todos nós seus leitores. Mas a Paula Lavigne deveria aconselhá-lo a não citar nenhum personagem da vida real, vivo ou morto, como é comum mesmo em obra de ficção. O citado ou seus “herdeiros” podem querer entrar na partilha da receita do livro. E o Chico não haverá de gostar.

É indiscutível a importância das biografias para a preservação da memória. Mas você não acha que determinados livros ultrapassam a barreira do bom gosto, causando danos ao biografado ou a seus herdeiros?

Se ultrapassar essa barreira, é muito simples: a Justiça está aí para ser acionada. O problema é que neste país cartorial, a tendência é a “justiça” ficar ao lado dos seus iguais, dos famosos, dos que têm maior poder, como se viu no caso da biografia do Roberto Carlos. Pessoalmente, respeito boa parte da obra do Roberto, como compositor e principalmente como cantor. Mas não tenho o menor interesse em saber da vida dele, nem mesmo a história do acidente que ele teima em esconder, e o país inteiro conhece. Pra mim, uma vida só vale uma biografia se ela puder ser útil ao leitor e ajudá-lo a entender e enfrentar essa aventura fascinante que é a vida. Que me desculpem, mas eu não sei o que Roberto, Caetano, Gil, Djavan e outros têm a revelar que nos seja proveitoso e que não saibamos por tudo que se escreveu na imprensa sobre eles e seus trabalhos, até mesmo durante a ditadura militar. Já sabemos o que eles fizeram e o que disseram. Não é preciso mais, se eles preferirem assim. Lamento.

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Mas justamente a lei que protege a intimidade dessas personalidades (art. 20 e 21 do Código Civil) é que está sendo questionada em Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Associação Nacional dos Editores de Livros. Caetano, ao se defender em sua coluna no Jornal O Globo, citou Jorge Mautner: “Liberdade é bonita mas não é infinita /Me acredite: liberdade é a consciência do limite”. É possível falar em liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, em privacidade?

A lei que prende é a mesma que solta, sabemos todos. Depende das conveniências, dos interesses e dos envolvidos. Meter-se na intimidade das pessoas é crime, sim. E ponto. Não há o que discutir. Ocorre que se a própria pessoa expõe sua intimidade, como impedir que ela ganhe domínio público? Mas voltando ao que interessa, escrever uma biografia não é olhar a vida alheia pelo buraco da fechadura. Embora nessa sociedade formada no padrão “Caras”, olhar pelo buraco da fechadura e se deixar ser olhado é a tendência dominante de quem não se conforma com o anonimato. Nenhum biógrafo sério, consciente, como Ruy Castro e Laurentino Gomes, está preocupado com a intimidade dos seus biografados, a não ser que algum detalhe seja determinante na compreensão da vida e da obra do personagem. Seria como se eu, ao escrever a biografia de Plínio Marcos, tivesse omitido que sua formação na juventude se deu na barra pesada do cais de Santos. O que ele fazia lá, pouco me interessa, mas que encontrou ali a raiz do seu humanismo e da sua inquietação de poeta e de dramaturgo é inegável. Quanto à frase do Mautner ela apenas repete o que todos sabem, é um lugar-comum, não tem nada de genial. Ou seja, em vez de Mautner, Caetano poderia ter citado a velha sabedoria popular que ensina que a minha liberdade termina onde começa a sua. Mas citar Mautner dá mais status! Bobagem. Só falta eles, Caetano e Mautner, invocarem a originalidade da frase para cobrar direitos autorais. O fato é que Caetano e companhia entraram num beco sem saída. Seus argumentos não se sustentam. Seria mais honesto dizer que estão falando de negócios apenas. Cifras, cifrões. Nelson Rodrigues dizia (e não só ele, mas está lá nas suas peças), que o dinheiro corrompe. Eu acho que, no fundo, é disso que se trata. Tanto que o filósofo Djavan concluiu que os biógrafos enriquecem com os seus livros e por isso os biografados ou seus herdeiros também têm direito a uma boquinha. Não há desculpa para a ignorância do Djavan sobre o mercado editorial e a vida de escritor no Brasil, mas ele acabou entregando os motivos de sua adesão a Paula Lavigne. Pelo menos foi honesto, está preocupado é com o seu bolso, em beliscar algum. Mas é preciso chamar a atenção para a gravidade, para além do mundo dos livros, da causa desses novos censores e que atinge também o teatro, o cinema, a televisão e qualquer mídia. Cito um exemplo. O Ballet Stagium pioneiro da dança no Brasil, com mais de 40 anos de estrada, estreou recentemente um espetáculo belíssimo, que evoca a Semana de Arte Moderna de 1922. Na abertura do balé, uma figura reproduzindo o Abapuru, famoso quadro de Tarsila do Amaral, fica imóvel no canto do palco enquanto se desenvolve a coreografia. No final do movimento, o público percebe que não era um boneco, mas um bailarino dentro dela, que se arrasta para fora do palco. Cena para aplaudir. Mas de repente surge na vida do Ballet Stagium um advogado a serviço da herdeira de Tarsila pedindo uma grana violenta pela citação da obra. Depois de pesadas negociações, o preço baixou e o gentil advogado e a prestimosa herdeira, com a grana no bolso, autorizaram que se continuasse a usar a imagem sem precisar pagar mais nada. O Ballet Stagium agradeceu, mas cortou a imagem do Abapuru e, assim, Tarsila passa a não ser mencionada como personagem da Semana de 22. Bom, não acham? E pensar que desde os anos de 1970, durante a ditadura militar, o Ballet Stagium esteve à frente de todas as lutas pelo fim da censura. Mas isso para esses comerciantes não interessa. E vem a dona Paula Lavigne, Caetano et caterva dizer que não estão defendendo a censura. A quem eles pensam que enganam?