“Todo mundo conhece as falhas de Dickens – sua incapacidade de construir uma trama convincente, sua prosa desajeitada e às vezes gramaticalmente incorreta, seu sentimentalismo, sua inconsistência quanto a personagens verdadeiros no sentido shakespeariano -, mas ainda assim ele continua sendo lido enquanto artistas mais complexos já foram esquecidos”.
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A referência com que Anthony Burgess abre o capítulo que dedicou a Charles Dickens (1812-1870) em A Literatura Inglesa (Editora Ática, 1996, tradução de Duda Machado) é dura e pode parecer ofensiva a um dos mais populares escritores da língua inglesa, embora seja realista e verdadeira. Mas os tropeços do autor, cujo bicentenário de nascimento celebramos hoje, são identificados apenas por leitores maduros e muito atentos. Mesmo assim, são eclipsados pela imensa vitalidade e a especial “atmosfera” da sua obra.
G.K. Chesterton (1874-1936) disse que “ele conduziu uma multidão, fez o que nenhum estadista inglês tinha feito, ele chamou o povo”. De fato, dificilmente encontraremos um autor que tenha sido tão paparicado pelos seus leitores. “Charles Dickens e o povo inglês do início da era vitoriana foram feitos um para o outro”, escreveu Daniel J. Boorstin no seu monumental Os Criadores – Uma História da Criatividade Humana (Editora Civilização Brasileira, 1995, tradução de José J. Veiga).
Nascido em Portsmouth, Dickens, aos 5 anos, mudou-se com a família para Londres. Quando tinha 12 anos, seu pai, que ele dizia “ser o homem mais bondoso e generoso que já existiu”, foi preso por dívidas. O garoto teve que abandonar os estudos para ajudar no sustento da família, e foi trabalhar em uma fábrica de graxa de sapato. A adolescência sofrida e ressentida inspira boa parte da sua obra e a marca com ferro em brasa. Para entender ainda melhor a obra de Dickens – como, de resto, o trabalho de qualquer outro escritor – impõe-se colocá-lo na moldura do seu tempo e condição.
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No mesmo ano (1837) em que a rainha Vitória (1819-1901) subiu ao trono, o trabalho de Dickens como escritor começou a ser reconhecido graças à publicação de The Picwick Papers no ano anterior.
Boorstin refere-se ao começo da era vitoriana como “uma época de brutalidade pública e untuosa religiosidade, época de prisões cruéis, de férrea disciplina nas fábricas, de trabalhadores analfabetos”.
Mais tarde, uma série de reformas, principalmente as que foram levadas à frente pelo grande primeiro-ministro Benjamin Disraeli (1804-1881) que também foi escritor, começaram a curar essas mazelas. Quando Vitória morreu, era soberana de um império colonial no qual “o Sol nunca se punha”.
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Ainda garoto – se bem me lembro, aos 12 anos -, conheci Charles Dickens quando recebi um exemplar de Oliver Twist como presente de aniversário. Fiquei emocionado com a história do menino sofrido e explorado. Ao mesmo tempo, fiquei encantado com a descrição vívida dos cenários onde a trama se desenrola. Anos mais tarde, em Londres, refiz boa parte do roteiro de Oliver pelas ruas daquela metrópole labiríntica.
Li boa parte da obra de Dickens. Considero-o um grande contador de histórias que têm carne e osso, emoções fortes – medo, solidão, angústia, raiva – e também humor. Creio que ninguém sai ileso da sua leitura. Você pode não gostar, mas duvido que fique indiferente a ela. E isto basta para justificar uma obra. Questionar e perturbar são atributos importantes dos livros que valem a pena ser lidos.
Sofri com Oliver, chorei a morte de Nell em A Loja de Antiguidades, e me emocionei com a metamorfose do odioso avarento Scrooge em um generoso filantropo em Um Conto de Natal.
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Os personagens que se movem no estranho mundo de Dickens são marcantes, inesquecíveis. Para T. S. Eliot (1888-1905), “eles derivam de exagerações de uma qualidade humana até o ponto da caricatura”. O senhor Micawber é a personificação do otimismo; Uriah Heep é doentiamente hipócrita e arrivista e por aí afora. Duas obras de Dickens me fascinaram de modo especial: Um Conto de Duas Cidades e Grandes Esperanças. Recomendo a leitura de ambas como uma homenagem ao magnífico escritor.
Biografia:
Charles John Huffam Dickens, mais conhecido como Charles Dickens, nascido em 7 de fevereiro de 1812, foi o mais popular romancista da Era Vitoriana, e contribuiu para a introdução da crítica social na literatura de ficção inglesa. Entre seus maiores clássicos estão Oliver Twist, Um Conto de Natal e David Copperfield, obras que descrevem os horrores de asilos, orfanatos, escolas e prisões com um toque de humor. Educado por sua mãe, Elizabeth Barrow, Dickens tomou gosto pelos livros quando criança. Durante três anos frequentou uma escola particular. Contudo o seu pai foi preso por dívidas e, ainda adolescente, Dickens precisou trabalhar. Anos depois, a situação financeira da família melhorou, graças a uma herança recebida pelo pai. As más condições de trabalho da classe operária tornaram-se um dos temas recorrentes da sua obra. Em 1832, conseguiu um emprego como repórter no jornal Morning Chronicle. Passou a publicar crônicas humorísticas sob o pseudônimo de Boz, reunidas mais tarde como Esboços Feitos por Boz. Com isso, Dickens ganhou espaço no jornal para apresentar os capítulos de As Aventuras do Sr. Pickwick, que estabeleceu seu nome como escritor. Em 2 de Abril de 1836, Dickens se casou com Catherine Hogarth, com quem teve 10 filhos. Dois anos depois, começou a divulgar, em folhetins semanais, Oliver Twist onde, pela primeira vez, apontava os males sociais da Era Vitoriana.
Principais obras:
> David Coppefield – A vida aventurosa e atribulada de David Copperfield, desde a difícil infância como órfão até a descoberta do grande amor da sua vida, passando pelos anos de estudo de Direito e as viagens pela Europa. David nasceu pouco depois da morte do seu pai. A mãe, Clara, é fraca mas o ama. A tia Betsy o enviará para uma boa escola e fará com que David conheça Agnes. Depois de um primeiro casamento, interrompido pela súbita morte da sua mulher, ele voltará a encontrar Agnes, confessando ambos o sublime amor que nutrem um pelo outro.
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> Um Conto de Duas Cidades – De um lado, encontramos personagens como o ex-prisioneiro da Bastilha, doutor Manette; Charles Darnay, o aristocrata que rompe com a família e com sua classe social; o senhor Lorry, a personificação do inglês sistemático e virtuoso; o enigmático Sidney Carton, aquele que confere à trama o que ela tem de mais romanesco. Todos com personalidade marcante, na melhor tradição do romance folhetinesco. De outro lado, contrapõe-se a multidão: o povo miserável de Paris, ora animalizado na pobreza à qual os empurrou uma voraz aristocracia, ora plateia ensandecida do espetáculo dantesco de La Guillotine.
> Um Conto de Natal – Scrooge é um homem de negócios bastante rabugento, sovina e solitário, que não demonstra um pingo de bons sentimentos e compaixão para com os outros. Não deixa que ninguém rompa sua carapaça e preocupa-se apenas com seus lucros. No frio natalino, ele é visitado pelo fantasma de Marley, seu sócio, morto há algum tempo. Esta visita mudará a sua vida.
> Oliver Twist – Numa cidadezinha da Inglaterra, uma jovem dá à luz um menino, mas morre em seguida. O pequeno órfão recebe o nome de Oliver Twist e vive seus primeiros nove anos em instituições de caridade. Não suportando tantos maus-tratos, o garoto foge para Londres, onde se junta a um bando de delinquentes. Vive grande sofrimento antes de ser feliz com a herança que o pai lhe deixou e a inesperada família que encontrou.
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