O leitor que não conheceu a Florianópolis dos anos 1990 talvez não tenha experimentado o pastel de berbigão na banca do seu Ênio, caminho do Largo da Alfândega, em direção ao Mercado Público. Mas certamente ouviu falar do Berbigão do Boca, aquele ajuntamento de milhares de pessoas que oficialmente abre o Carnaval de Florianópolis. Entre o desparecimento da banca do Ênio (falecido em 2009) e a folia de Paulinho Abraham, o Boca, que neste ano arrastou 50 mil pessoas pelas ruas do Centro da cidade, o molusco nascido em areias lodosas e que em 2015 ficou ameaçado de extinção encontrou no cativeiro uma ferramenta complementar à existência.
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Além de nova opção na maricultura e a consequente fonte de renda, como geram ostras e camarão. É o que mostra um estudo do Centro de Desenvolvimento em Aquicultura e Pesca da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri).
A pesquisa desenvolvida pelo oceanógrafo e doutor em Geografia João Guzenski teve sucesso ao produzir larvas do molusco, manter as sementes em crescimento em berçário marinho e fazer a transferência para sistema de produção suspenso flutuante. O trabalho mostrou que o processo de olericultura é bastante rápido, levando cerca de 10 dias para as larvas assentarem.
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Assim, explica o pesquisador, as sementes podem ser transferidas para o mar quando atingem um tamanho médio de 1,72mm. Com o uso de um sistema suspenso flutuante de bandejas, os berbigões alcançam um tamanho médio de 24,3mm em 12 meses de cultivo e uma sobrevivência de 94% nessa fase. Quando os estudos estiverem concluídos, a prática da bandeja deve ser abandonada, e as sementes passarão a ser depositadas diretamente no mar, sob a proteção de estruturas com malhas para proteção dos berbigões.
Conheça mais detalhes sobre o berbigão:
Para Guzenski, fatores como extração excessiva, poluição das águas costeiras, diminuição de habitats e falta de plano de manejo dos bancos naturais resultaram na sobre-exploração da espécie, ameaçando a sustentabilidade. Nem tudo está perdido.
– A introdução de sementes de berbigões produzidas em laboratório, seja empregando técnicas de repovoamento dos bancos naturais ou de cultivo na maricultura, pode auxiliar sobremaneira a recuperação desta atividade, com benefícios sociais, econômicos e ambientais – afirma Guzenski.
Entenda como funciona o cultivo do berbigão
O pesquisador lembra que em países como China, Estados Unidos e Canadá outras espécies de berbigão são cultivadas enquanto atividade econômica. Para ele, a criação do molusco em cativeiro “pode ser utilizada como ferramenta complementar à gestão deste recurso ou ser introduzida como uma nova opção na maricultura”.
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Saiba como é a reprodução do berbigão
Os berbigões são colhidos na costa catarinense há muito tempo, sendo utilizados na pesca artesanal, esportiva e de subsistência. No litoral brasileiro recebem nomes diferentes: fuminho, mariscos, papa-fumo, samanguaiás. Nos últimos anos a captura tem diminuído nos nossos mares. De acordo como os pesquisadores, o declínio é causado por fatores como poluição, diminuição de habitats e a pesca excessiva.
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Em 2015, quando cerca de 90% da espécie desapareceu na Reserva Extrativista da Costeira do Pirajubaé, na Costeira do Pirajubaé, Sul da Ilha, a iguaria entrou em alerta. De acordo com os técnicos da reserva, a conjunção de fatores como onda de calor e chuvas torrenciais na sequência alteraram a salinidade da água levando à diminuição.
Mas há, ainda, outro fato sempre lembrado pelos extrativistas: o vazamento do óleo ascarel, em 2012, numa subestação da Celesc, na região da Tapera, e que teria atingido córregos e mangues próximos até ser descoberto. Em 2014, a Justiça Federal determinou que a Celesc destinasse R$ 20 milhões para recuperação ambiental e ressarcimento de maricultores.
Confira os locais onde o berbigão é cultivado
Receitas com sabor de mar e identidade cultural
São muitas as formas de se preparar berbigão. Nas cantinas de São Paulo, um dos principais mercados, o espaguete ao vôngole é um dos pratos mais apreciados. Em Florianópolis, o pastel é bastante comum e facilmente encontrado em bares e restaurantes. Mas têm quem prefira berbigão ensopado com chuchu, no pirão de feijão, no macarrão ou saladas ou simplesmente o caldinho. Nem sempre foi assim.
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A pesquisadora e doutora em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Alana Casagrande, explica que no passado o berbigão era considerado um alimento associado à “pobreza”, e rejeitado pela parte mais abastada da sociedade. A situação começou a mudar no começo dos anos 1990. Ficava para trás a ideia de “comida de pobre” e o reconhecimento a uma iguaria solicitada por restaurantes do centro do país, e renomeado de vôngole, como é chamado na Itália.
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A gourmetização levou a uma maior extração. É principalmente a partir dali que famílias manezinhas passaram a ter no molusco a principal fonte de renda. Nas bancas do Mercado Público, o produto pode ser encontrado a preços em torno de R$ 55 o quilo. Conforme os comerciantes, o berbigão tem como origem as praias da Ilha e de municípios do litoral, como Palhoça e São Francisco do Sul.
O empresário Beto Barreiros, do Box 32, um dos pontos mais concorridos, lembra que o berbigão era iguaria dos ilhéus desde que os açorianos povoaram a ilha de SC, a partir de 1748. Tem razão: os sambaquis com as conchas são prova de que há 5 mil anos os primeiros habitantes de Desterro, já se alimentavam de berbigão.
SC concentra produção nacional de moluscos
A produção de moluscos de cultivo no Brasil está concentrada em Santa Catarina. De acordo com a Epagri, um total de 478 produtores estiveram envolvidos no cultivo das 16.253 toneladas de moluscos em 2020. Os mexilhões são os organismos mais produzidos, seguidos pelas ostras e vieiras.
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O Estado é responsável por mais de 95% da produção nacional, proporção que se mantém praticamente constante desde 2013. A produção de vieiras em 2020 foi de 8,6 toneladas. Santa Catarina possui apenas quatro produtores desses organismos, sendo três em Florianópolis e um em Penha.
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A produção de ostras na safra 2020 em SC foi de 2.165,1 toneladas, quantidade cerca de seis vezes menor que a produção de mexilhões. As ostras-do-pacífico (Crassostrea gigas) representam mais de 98% da produção, sendo que as espécies nativas (Crassostrea brasiliana ou Crassostrea gasar) completam esse montante.
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