O cenário é de abandono. Mato alto, paredes pichadas e o maquinário não existe mais. O que se vê ali nem de longe parece se tratar da maior barragem de contenção de cheias do Brasil e fundamental para minimizar enchentes no Vale do Itajaí.
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Apesar de estar agora no centro das discussões porque não foi ativada na inundação de maio deste ano, o problema com a estrutura em José Boiteux, no Alto Vale, começou antes mesmo de ela ficar pronta, na década de 1990.
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A barragem é alvo de impasse entre a comunidade indígena e o governo federal, que fez a construção dentro de uma terra da etnia Xokleng legalmente demarcada. Desde 2014, quando foi invadida pela última vez, sofreu depredações e os equipamentos simplesmente sumiram.
De lá para cá, só funcionou de forma improvisada, com um o suporte de um caminhão hidráulico para abrir e fechar as comportas. Um vídeo (abaixo) de três anos atrás mostra uma operação teste.
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Na última enchente ela nem chegou a ser operada, embora isso devesse ter ocorrido quando o Rio Itajaí-Açu alcançou a marca de seis metros em Blumenau. No último mês o nível das águas na cidade atingiu 9,4 metros e afetou aproximadamente 2,5 mil pessoas no município. Técnicos da Defesa Civil de Santa Catarina dizem que se a barragem tivesse sido operada o pico da cheia seria quase um metro mais baixo.
A enchente de maio é considerada de pequeno porte, mas… E se vier outra? E se for maior? Nesse caso, não há garantias de que ela vai funcionar.
Hoje, pelo jeito que está a estrutura, eu creio que a equipe técnica não teria condições de fazer a operação nem com o caminhão hidráulico. Teria que fazer uma avaliação mais detalhada. Considerando o tempo que a barragem está abandonada e cada vez se deteriora mais, há um problema latente. Vai que opera, fecha e depois não consegue abrir as comportas. É preciso analisar os prós e contras — pondera o secretário de Estado da Defesa Civil, David Busarello.
Ao menos três vezes os indígenas invadiram a estrutura e impediram a operação para chamar atenção aos pleitos locais. A comunidade reivindica principalmente um estudo de impacto socioambiental para mensurar o prejuízo sofrido com a estrutura. Via de regra esses estudos ocorrem antes da obra, mas isso acabou não acontecendo.
Em 2015 um acordo chegou a ser firmado. A lista de pedidos incluía também a construção de casas e manutenção das estradas dentro das aldeias, bastante danificadas com os alagamentos provocados pelo represamento de água na barragem. As residências foram erguidas e as ruas recebem regularmente patrolamento, segundo os próprios indígenas.
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Busarello garante que o que era compromisso do Estado foi feito, mas o estudo seria responsabilidade do governo federal. Passados sete anos, a Defesa Civil de Santa Catarina decidiu fazer o levantamento para resolver o impasse e tentar por fim à novela, mas o documento ainda não está pronto.
Estima-se que 1,5 milhão de pessoas são beneficiadas quando a barragem funcionar conforme o previsto.
Três novas barragens devem ser construídas no Alto Vale para contenção de enchentes
O cacique Lázaro Cundagn Ka Mrêm é enfático: tendo os pedidos atendidos, a comunidade não irá impedir o acionamento das comportas. Ele se mostra sensível a quem depende da estrutura, mas cobra o olhar atento a quem ficou dentro do problema.
O líder conta, por exemplo, que a comunidade vivia mais próxima das margens do Rio Itajaí do Norte, mas quando a obra ficou pronta e começou a alagar as casas, a alternativa foi ir para as áreas mais altas — e, aí, contabilizar prejuízos e viver com eles.
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— A gente gostaria de fazer um apelo ao governo federal para que olhasse os dois lados. Nós entendemos que do lado de baixo [Médio Vale do Itajaí] tem necessidade da barragem, mas que visse também o nosso lado. Nós vivemos dentro de um prejuízo. As três aldeias – Palmeira, Figueira e Coqueiro – estão condenadas pelo levantamento da Defesa Civil.
Confira o vídeo
Veja linha do tempo sobre o impasse
- A Área Indígena Duque de Caxias, onde a barragem está construída, foi criada em 1926. Inicialmente eram 20 mil hectares, mas ao longo dos anos houve reduções por parte do Estado.
- Em 1965 a área foi titulada: 14.156 hectares foram registrados em favor dos indígenas.
- Em 1976 começa a construção da barragem. A maior parte do alagamento acontece na área demarcada — ocupando um total de 870 hectares. A obra termina em 1992.
- A partir da década de 1990, índios invadem empresas de reflorestamento em Doutor Pedrinho e destroem casa nos arredores da barragem.
- Em fevereiro de 1997, índios ameaçam explodir a casa de máquinas se não fossem atendidas algumas reivindicações de indenização após a construção da estrutura.
- Policiais são feitos reféns em julho de 1998 e rodovias são fechadas pelos índios.
- Em novembro de 2001 os índios acampam novamente na estrutura de contenção de cheias do Alto Vale.
- Em agosto de 2003 o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assina uma portaria ampliando as terras indígenas de 14 mil hectares para 37 mil hectares. Os 23 mil hectares a serem somados compõem terras adquiridas por agricultores, que hoje trabalham e subsistem do espaço. O caso aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal.
- Em março de 2005, 300 índios invadem barragem, montam acampamento e ameaçam equipamentos, deixando a estrutura sem manutenção e operação.
- Manifestantes indígenas querem que a Justiça impeça agricultores de explorar área de extensão da reserva em janeiro de 2009.
- Em junho de 2014, durante uma enchente no Alto Vale do Itajaí, índios invadem a barragem novamente. O local sofre depredações e os maquinários somem, inviabilizando a operação normal.
- Em 2015 é assinado um acordo entre indígenas e governos federal e Estadual para que se atenda aos pedidos da comunidade Xokleng e o acesso à barragem seja liberado. Na enchente daquele ano, bem como nas duas de 2017, a estrutura é ativada durante as inundações, mas com apoio de caminhão hidráulico.
- Vídeo feito em 2019 mostra uma operação teste na barragem, mas em maio de 2022, durante outra enchente, ela fica fora de operação. Defesa Civil diz ser “temerário” ativá-la por causa das condições precárias da estrutura.
- Em junho de 2022, governo do Estado diz ter superado impasses para obras de recuperação e espera assinar ordem de serviço para começo da reforma no segundo semestre deste ano.
Fotos mostram situação na barragem
Sítio arqueológico no canal extravasor
Se a recuperação da barragem de José Boiteux pode estar mais perto de acontecer, a do canal extravasor ainda tem obstáculos. A obra deveria ter sido entregue quando a estrutura foi construída, mas ficou inacabada.
Em 2019 o Ministério do Desenvolvimento Regional sinalizou a liberação de R$ 16 milhões para concluir os trabalhos. Revisões no projeto garantiram uma redução no orçamento e o custo caiu para R$ 6,2 milhões após a licitação.
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Parecia estar tudo resolvido até que um sítio arqueológico foi descoberto no traçado do canal extravasor. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) pediram um estudo do material.
O governo do Estado desembolsou cerca de R$ 100 mil para uma empresa avaliar e cadastrar as informações sobre o que são os dois blocos de rocha. E vai precisar também de autorização especial para retirada.
A destinação dos resíduos removidos para a conclusão do canal extravasor também depende de autorização de órgãos federais e de lideranças indígenas.