Foram mais de 15 mil livros reunidos, catalogados e disponibilizados ao público ao longo de quase 13 anos – mas, agora, a Barca dos Livros, tradicional biblioteca comunitária na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, se prepara para fechar as portas. Mantido e organizado pela Sociedade Amantes da Leitura, criada por voluntários em 2003, o maior acervo literário infanto-juvenil de Santa Catarina encerra suas atividades por falta de recursos financeiros para manter a biblioteca em funcionamento.
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"Nós não temos condições e nem apoio de instituições para continuar pagando aluguel, pagando nossas despesas; mesmo com a grande quantidade de voluntários que sempre nos ajudaram", declara a diretora-geral da Sociedade Amantes da Leitura, Tânia Piacentini. Por enquanto, a biblioteca ainda está aberta para visitação, devolução de livros, e leitura de obras no local; mas não estão mais sendo feitos empréstimos – isso porque o acervo da Barca já está sendo encaixotado, para ganhar vida nova em outros lugares.
Os volumes serão divididos em dois conjuntos e doados a duas instituições diferentes. Uma delas é a Escola Básica 25 de Maio, no assentamento Vitória da Conquista, do MST, em Fraiburgo (SC). A escola – que completou 30 anos no início de novembro – foi escolhida porque sua biblioteca não atende apenas a comunidade escolar, mas funciona como biblioteca comunitária para cinco assentamentos da região, além dos moradores da própria Fraiburgo. "A missão da Barca sempre foi e continua sendo atender à toda comunidade, das crianças pequenas aos adultos", destaca a coordenadora Eleonora Casali, explicando o porquê da procura por um lugar que possa atender a um público mais amplo. Por coincidência, a campanha de 2019 do MST é justamente "pelo direito à literatura nas escolas do campo".

Também por esse motivo, o destino da outra metade do acervo, que permanece em Florianópolis, ainda não está decidido: a Escola Básica Municipal João Gonçalves Pinheiro, no Rio Tavares, vai abrigar os livros temporariamente, até que seja encontrado um local que possa manter os volumes definitivamente – atendendo à comunidade, e sem cobrar aluguel por isso. "Até mesmo por motivos de segurança, uma biblioteca escolar não pode permanecer aberta ao público em geral", explica Eleonora.
O grande número de livros no acervo da Barca não surgiu da noite para o dia – e nunca foi comprado. Desde os anos 1970, Tânia Piacentini (que é ex-professora da UFSC e sempre trabalhou nas áreas de educação, língua e literatura; com especialização em Ensino da Literatura) é votante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, com sede no Rio de Janeiro. Ao longo dos anos, ela reuniu os livros que recebe para análise, enviados pelas editoras inscritas nas premiações da Fundação. Com a criação da Sociedade Amantes da Leitura, o grupo passou a ser votante, por meio de Tânia. Segundo ela, as obras disponibilizadas ao público na Barca foram "fruto de uma seleção anual dos melhores livros para crianças e jovens publicados no Brasil." Além de ter vencido diversos concursos locais, a Barca dos Livros foi eleita a Melhor Biblioteca Comunitária do país em 2014.
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Para abrir a biblioteca, em 2007, a Sociedade Amantes da Leitura teve apoio do Ministério da Cultura – e o suporte financeiro permaneceu ao longo dos primeiros anos; por diversas frentes, como o Governo de Santa Catarina e a Fundação Franklin Cascaes. Segundo Tânia, a Barca dos Livros venceu e recebeu recursos de diversos editais. Mas, com o tempo, o dinheiro foi minguando. Tânia reclama que, hoje, há menos ações governamentais voltadas à manutenção de projetos como a Barca dos Livros; e cita a extinção do Ministério da Cultura como fator crucial. "Hoje, não temos apoio de nenhuma instituição financeira ou governamental", ela diz. "Temos um pequeno grupo de pessoas que faz contribuições mensais voluntárias, mas infelizmente não o suficiente para custear todas as nossas despesas." Dos leitores, nada nunca foi cobrado.
Além do empréstimo de livros, a Barca realizava outras ações, sempre voltadas à formação de leitores e ao incentivo do hábito da leitura – delas, a mais famosa é a Histórias na Barca, um passeio mensal de barco pela Lagoa da Conceição, aberto ao público, com música, narração de histórias e manuseio de livros. Havia também o Escola vai à Barca, realizado semanalmente, em que a biblioteca recebia a visita de escolas para atividades de leitura mediada e contação de histórias. Em 2018, mais de 1,4 mil alunos e 230 educadores passaram pelo Escola vai à Barca; e quase duas mil pessoas participaram dos passeios de barco. A biblioteca também fecha com 1.980 leitores cadastrados, a maioria deles na "categoria família 3" – que, segundo Eleonora, indica que no mínimo três pessoas pegam livros emprestados por aquele cadastro; ou seja, o número de leitores únicos é bem maior.

A administração da Barca pede que quem ainda tiver livros da biblioteca em casa faça a devolução no máximo até este sábado, 30 de novembro; mesma data em que será realizado o último Histórias na Barca: o barco zarpa às 17h, mas os ingressos serão distribuídos uma hora antes, às 16h. No domingo, dia 1º de dezembro, o acervo que vai para a Escola 25 de Maio será enviado à UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), para triagem e treinamento dos bibliotecários que vão receber as obras em seu novo lar. Na próxima semana começa a organização do restante das obras para mudança – a saída dos livros precisa acontecer até o dia 15 de dezembro. O Facebook da biblioteca permanece ativo até que o novo endereço do acervo seja definido, para que o público possa ser informado.
Também na semana que vem, a partir de terça-feira, dia 3, começa um bazar na Barca dos Livros, no horário normal de funcionamento, das 14h às 17h. Livros selecionados, volumes sobre arte e teatro, histórias em quadrinhos, móveis, e mesmo roupas doadas por voluntários estarão à venda, "para que possamos honrar nossas despesas antes de fechar", conforme Tânia. Embora seja um alento saber que, de uma forma ou de outra, o numeroso acervo da Barca vai continuar disponível à comunidade, Eleanora resume, com uma risada agridoce, o sentimento que tomou conta da equipe nos últimos dias, durante o processo de encaixotar os livros e se preparar para vê-los partir: "É uma coisa muito difícil baixar uma biblioteca. Estamos todos com dores nas costas e na alma."
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