O ano era 1974 e o conjunto Demônios da Garoa tocava no rádio de uma Brasília amarela que passeava sobre a Ponte Hercílio Luz. Dentro do carro, um dos jovens gosta do “Quaiscalingudum” na música Trem das Onze, de Adoniran Barbosa.

Continua depois da publicidade

Nos altos do principal cartão postal de Florianópolis, com o aterro recém-construído e moradores sobre a passarela para a travessia Ilha-Continente, surge a inspiração para o nome de um trailler, mais tarde bar, que irá acompanhar a transformação da pequena para média-grande cidade.

Localizava-se em frente ao Campo da Liga, antigo estádio do Avaí, onde hoje está o Beiramar Shopping. Quatro décadas depois, o Kayskidum, endereço de clientes em especial das madrugadas pós-festas, fecha as portas em definitivo. 5h do próximo 29 de março.

Sobre o Kays, carinhosamente chamada pelos clientes, paira uma decisão pensada, discutida, amadurecida. Não há dívidas e todos os compromissos trabalhistas serão honrados. Não é a concorrência de grandes redes. Nem a mudança de hábitos, como a frequência dos jovens que saem das festas aos postos de combustíveis. É o desejo de mais tempo para a família.

Continua depois da publicidade

É o que dizem os proprietários, os mesmos que a partir da voz rouca dos sambistas paulistas improvisaram o nome Kayskidum. Conforme eles, que na década de 1970 acompanharam os pais Ângelo e Laurinda Guardini na transferência de São Miguel do Oeste, no Extremo Oeste de Santa Catarina, para Florianópolis, é hora de descansar.

Paulo, Marco e Angela Maria Guardini formaram famílias e tornaram-se avós. Os filhos seguiram rumos diferentes do empreendedorismo e optaram por outras profissões. A marca Kayskidum é registrada. O ponto está com uma imobiliária para ser alugado a R$ 31 mil mensais. Mas provável que o espaço seja usado para outro ramo comercial.

– São 39 anos e sete meses de atividades. Uma vida com tudo o que um bar oferece, inclusive muitos amigos. Mas é hora de curtir os netos – conta Ângela Maria, que até os últimos dias administra o empreendimento.

Continua depois da publicidade

Ela explica que muito do que a família conquistou, inclusive assegurar estudos para uma vida profissional aos descendentes dos Guardini, deve-se à dedicação. Destaca, ainda, a colaboração dos funcionários. Especialmente aqueles que trabalham desde os primeiros anos.

Como reconhecimento, uma fotografia dos “dinossauros” foi afixada perto do balcão com o ano que cada um começou: Vilson (1974), que foi o primeiro chapista, Carlinhos (1976), Beleza (1978), Beto (1983) e Rico (1988).

Beleza é Sérgio Carlos dos Santos, garçom que se tornou lenda do Kayskidum. Simpático e atencioso em amigos espalhados por todo o país feitos de mesa em mesa:

Continua depois da publicidade

– Em mais de 30 anos de serviço, só apresentei três atestados médicos. Mas para mim, famoso e gente simples era cliente igual.

As três fases do bar

O espaço que o Kayskidum conquistou no coração dos frequentadores pode ser medido nos guardanapos presos a um mural. Gente que lembra do primeiro lanche no trailler, ainda dentro do carro; casais que se conheceram nas mesinhas do bar, crianças que foram experimentar o crepe salgado de tanto ouvir a mãe falar do tempo em que era moça.

Kayskidum nasceu em 22 de agosto de 1974 como a mais nova casa de lanches e crepes da cidade. Os proprietários chegaram com a coragem típica do Oeste: vendendo “x-salada” em uma região chique, rodeada por casarões bonitos e de gente com dinheiro que morava em apartamentos no Centro da cidade. Época em que a movimentada Avenida Beira-Mar Norte era apenas uma rua. A água chegava perto das casas.

Continua depois da publicidade

Nesses quase 40 anos, o point passou por três grandes reformas. O trailler com telhado e mesinhas funcionou até 2006. A primeira remodelagem foi em 1989. Há oito anos funciona com andar superior, um espaço mais reservado com mesas e cadeiras e paredes decoradas com quadros de propagandas e discos antigos.

Parafraseando Adoniran no seu Trem das Onze, é como se Kayskidum não pudesse ficar mais um minuto com você, Florianópolis. Assim como também não mais puderam ficar – independente dos motivos – os vizinhos Ressaca, Cantina Di Rose, Espetinho…

Confira a entrevista com Sérgio Carlos dos Santos, o Beleza:

Diário Catarinense – Como surge o Beleza?

Garçom Beleza – Foi no Kayskidum, bem no começo, com os jovens que falam muita gíria. Eu falava era ‘tá beleza, tá beleza’, e pegou.

Continua depois da publicidade

Diário Catarinense- Você atendeu muita gente famosa?

Beleza – Sim, veja alguns nomes: Antônio Fagundes (dentro do carro), Xuxa e paquitas, Erasmo Carlos, Alceu Valença, Jair Rodrigues, Alexandre Pires, Guga, muitos políticos.

DC – Tem algum fato que tenha marcado?

Beleza – Sim. A noite que uma moradora de rua pediu um dinheiro para o Guga. Ele viu que ela estava de pé no chão e tirou as sandálias, com a marca do nome dele, e deu para ela calçar.

DC – Depois de 36 anos no Kayskidum, o que você pretende fazer daqui para a frente?

Beleza – Tenho muitas propostas de emprego, mas até a madrugada do dia 29 vou estar aqui atendendo com o mesmo jeito de sempre.

Continua depois da publicidade

DC – Quando você começou aqui a cidade era bem diferente…

Beleza – Muito diferente. Eu morava no Continente e cheguei a vir de baleira e de carruagem.

DC – Você falou que é grato aos patrões e que também foi fiel a eles?

Beleza – Malandragem não é comigo. Em 36 anos, apresentei apenas três atestados médicos. Estava doente mesmo.