Na Porto Alegre (RS) do século 19, a descoberta do que ficou conhecido como ¿Crime da Rua do Arvoredo¿ ganhou dimensões que transpuseram os limites de tempo e espaço da cidade. O mal-estar se propagou em forma de náusea e indignação a toda uma população que se descobriu consumidora de linguiça produzida com carne humana. Não somente o radicalismo da morte e da ocultação de cadáver chocou a sociedade, mas, sobretudo, a sutileza do ato que envolveu de forma passiva, massiva e banal toda a vizinhança na ingestão do alimento proibido.

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A banalidade do mal, nesse caso, se encaixa na conceituação de Hannah Arendt durante o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, quando percebeu que o criminoso não era uma criatura abominável e perversa, e sim um ser humano que havia sido absorvido pela burocracia nazista e que, ao cumprir ordens, participou passivamente do assassinato massivo de judeus.

A filósofa contestou o conceito do mal radical kantiano e fez uma análise do quanto o mal atinge grupos sociais e o próprio Estado, podendo tornar-se um fato político e histórico, produzido e manifestado por homens ao encontrar uma abertura institucional.

Analogamente às descrições acima, podemos incluir como banalidade a corrupção passiva e/ou ativa que continua pintada no mapa do brasileiro. Ninguém contesta que a modernidade vulnerável que vivemos, tanto no âmbito moral quanto físico, fez com que nossos corpos passivos e fluídos fizessem parte do arsenal corrompido da política, tornando-se também veículos na propagação do mal institucionalizado, seja na exploração do trabalho alheio, da natureza e/ou dos animais. Estamos todos corrompidos. A maldade que nos causa nojo e que, agora, corre nas nossas veias está precisando urgentemente do antídoto da responsabilidade e da honestidade para que a nossa ¿carne fraca¿ deixe de apodrecer e consiga evitar uma banalidade e um mal-estar maior ainda.

*Vivian Celestino é pós-doutora em Gestão Territorial e mora em Florianópolis

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