Santa Catarina está em situação de emergência por causa da crise na saúde desde 3 de junho. Mas a situação agravou desde então devido ao recente aumento da demanda por atendimentos hospitalares, às filas de espera para leitos de Unidades de Terapia Intensiva e às mortes de pacientes à espera de vagas. 

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A crise de saúde pública foi parar na Justiça, que decidiu que o Estado deve ser multado caso não consiga atendimento e vaga de UTI para crianças e adolescentes em até 12 horas. A medida é uma resposta a uma ação do Ministério Público de Santa Catarina. Até a noite desta quinta-feira (14), a Secretaria de Estado de Saúde (SES) não havia sido notificada da decisão.

Na quarta-feira (13), o governo de Santa Catarina anunciou novas ações para o Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis, e para o Hospital Materno Infantil Santa Catarina, em Criciúma, a fim de amenizar as marcas da crise. A SES informou ainda que foram criados, em pouco mais de um mês, 60 leitos neonatais e pediátricos (confira nota abaixo). Mas, como o cenário da saúde chegou neste estágio em Santa Catarina e o que pode explicar o caos atual?

A SES afirma que os vírus ligados a doenças respiratórias e a baixa cobertura vacinal podem explicar o aumento da demanda por atendimento de crianças no Estado. De acordo com médicos ouvidos pela reportagem, a falta de planejamento em saúde, o retorno das crianças à rotina após o isolamento social, e o encerramento de atendimentos pediátricos em alguns hospitais ao longo dos anos devem ser considerados como principais fatores para o cenário crítico. 

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De acordo com o professor de pediatria da UFSC e coordenador do módulo de doenças respiratórias na infância, Luiz Cutolo, a demanda por atendimento no Hospital Infantil Joana de Gusmão nunca foi tão alta. O médico trabalhou na unidade de saúde até o mês passado, quando se aposentou. 

— Em dezembro, eu faço 39 anos de exercício da Medicina e nunca vi uma situação como essa antes. Nós estamos em uma crise, mas precisa ser contextualizado. Durante a pandemia, as crianças ficaram isoladas e não passaram pela experiência das infecções virais que normalmente, classicamente, teriam. Quando as crianças voltaram a serem expostas, esses vírus vieram com carga total. Vieram em crianças que não tinham ainda uma memória de defesa, portanto não estavam preparadas para o número de infecções virais que estavam acontecendo — explica o dr. Luiz Cutolo.  

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Segundo a SES, além dos vírus respiratórios, as crianças também estão sendo atingidas por doenças como a dengue, que também demandam o sistema de saúde. 

— Entre maio e abril, quando a gente começa a perceber um tensionamento maior dos leitos de UTI neonatal e pediátrico, o que que surge? Principalmente, os vírus envolvendo doenças respiratórias de inverno, somados à Covid e à dengue, inclusive. Tanto as doenças sazonais de inverno quanto a Covid e a dengue concorrem pelo mesmo nível de atenção na saúde. Nós estamos com um número incrementado de crianças sendo atendidas como nós nunca experimentamos. Nós chegamos ao ponto de receber um painel viral de uma criança de um ano e meio de idade que, dos vírus circulantes, a criança tinha todos: o sincicial respiratório, influenza e Covid — afirma o secretário de Saúde do Estado, Aldo Baptista Neto.  

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O professor Luiz Cutolo ressalta que, apesar de o cenário atual causar espanto, ele não ocorreu “do nada”. O aumento das infecções respiratórias era bastante previsível para este período do ano. 

— Aumentaram as infecções respiratórias e essas infecções são mais graves do que o habitual. Isso está claro. Mas, a resposta do planejamento em saúde foi um pouco retardatária em relação às evidências de que a gente teria um caos. Sabíamos desde janeiro que teríamos um problema no outono-inverno. Por quê? Porque em janeiro estavam internando, nos hospitais brasileiros, crianças com infecções respiratórias graves, o que não é comum acontecer nos meses de verão — diz Cutolo. 

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Segundo o coordenador do módulo de doenças respiratórias na infância, casos de doenças respiratórias identificados na Austrália serviram como parâmetro para médicos brasileiros projetarem a crise que viria.

— Existia uma projeção de que isso pudesse acontecer em janeiro porque, em dezembro do ano anterior, uma epidemia de infecções virais apareceu na Austrália, e a Austrália passa pelas mesmas estações de ano que nós no Brasil. Quando surgiram os primeiros relatos disso, nós conversamos com os colegas no hospital e falamos: “Vai chegar no Brasil”. Chegou com dois meses de atraso, mas chegou, e naquele momento já se alertava quanto à possibilidade de um outono-inverno caótico. Alguma coisa de planejamento deveria ter sido feita em janeiro. Então, teve uma resposta atrasada em relação a provável epidemia que aconteceria no outono-inverno. Já se previa essa possibilidade e a resposta teria de ser imediata para planejamento de médio prazo — pontua o professor.  

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De acordo com Luiz Cutolo, possíveis mudanças no padrão dos vírus também podem ser consideradas para o aumento dos casos. Segundo o professor, alterações em casos de bronquiolite, por exemplo, já são objetos de estudo em alguns países.

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Baixa cobertura vacinal

Tanto a Secretaria de Saúde do Estado quanto os médicos destacam que a baixa cobertura vacinal é um dos pontos que pode explicar o recente aumento do número de pessoas doentes em Santa Catarina.  

— Esse combinado [das doenças de inverno] é agravado principalmente, para a nossa surpresa, pela baixa cobertura vacinal. Os adultos não levaram seus filhos para se vacinar. Nós nunca vacinamos tão pouco e isso com todas as vacinas. Você pega a influenza, não passa de 30% da cobertura vacinal — diz o secretário Aldo Baptista Neto. 

Para o professor Luiz Cutolo, é necessário informar cada vez mais a população sobre a importância da vacinação, resgatando a tradição que Santa Catarina e o Brasil costumavam ter neste aspecto. 

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— Nós não estamos vacinando bem as nossas crianças. Seria muito fácil falar que a culpa é da pessoa que não levou seu filho para vacinar, mas não é só isso. Nós perdemos as campanhas de vacinação, estamos no caminho inverso do que foi no passado. É preciso fazer campanha e esclarecer a população da importância da vacina. Quanto às decisões pessoais de vacinar ou não vacinar, é outra coisa. É um livre arbítrio, que pode estar contaminado pelo discurso macabro que é o discurso antivacina — destaca. 

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Estrutura pediátrica deficitária

De acordo com Cecim El Achkar, médico e especialista em pediatria, a crise de hoje pode ser explicada por diversos fatos que ocorreram nas últimas décadas, como o fechamento de serviços pediátricos que funcionavam no Hospital Universitário, no Hospital Florianópolis e no Hospital Regional Homero de Miranda Gomes, em São José. De acordo com SES, o Hospital Florianópolis retomou atendimento de crianças em abril, quando deixou de ser referência para Covid-19.

— Para entender o que acontece hoje, é preciso voltar na história. Você perdeu [com o fechamento das alas pediátricas] aquele lençol grande, aquela cobertura que as crianças tinham antes de chegarem ao Hospital Infantil. Naquela época [anos 1980], a cidade tinha 200 mil habitantes, hoje a Grande Florianópolis tem um milhão de habitantes. Então perdemos quase que 70% desses serviços e a cidade multiplicou por cinco. Você não tem mais onde ser atendido, as mães não tem mais onde serem atendidas por pediatras — afirma. 

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Segundo o Cecim, em 2019, houve uma explosão de casos de bronquiolite em Florianópolis, mas, com a pandemia e o isolamento social, os números baixaram. Neste ano, tudo veio à tona novamente.  

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— Em 2022 as crianças voltaram para a escola e, como ficaram muito tempo em casa perderam a imunidade coletiva. Então, esse ano na verdade é a continuação daquilo que foi represado em 2019. Hoje a gente tem uma demanda grande e as crianças estão muito doentes porque perderam a imunidade, por causa do clima muito ruim e porque elas não têm uma cobertura [de atendimento]. O desmonte do atendimento das crianças; o de prevenção, de primeiro atendimento, de segundo atendimento, acabou. E tudo acaba desembocando em um único lugar, que é o Hospital Infantil — explica o especialista. 

Confira a íntegra da nota da SES

A Secretaria de Estado da Saúde (SES) informa que ainda não foi notificada da decisão judicial e que trabalha para garantir acesso a leitos de terapia intensiva a todos que necessitam deste tipo de atendimento. A pasta vem promovendo esforços para a ampliação, sendo que as ações sugeridas pela ação já fazem parte do escopo de trabalho da SES.

Vale ressaltar que a demanda atendida em Santa Catarina não é uma exclusividade da rede pública. A rede privada também está tensionada por conta do surto de doenças respiratórias.

Nos últimos meses, em razão da falta de vacinação de crianças, da carência de um pré-natal efetivo e do período propício para doenças respiratórias, a SES tem estruturado junto às unidades hospitalares um aumento na oferta de leitos e mais investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS). Desde junho, foi decretada situação de emergência em saúde para agilizar a criação de novos leitos de UTI. Em pouco mais de um mês, foram criados 60 leitos neonatais e pediátricos, sendo 47 destes de UTI e 13 de cuidados intermediários. O planejamento da SES inclui a criação de mais 39 leitos até agosto.

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Nesta quarta-feira, a SES já determinou a adoção de medidas emergenciais para os hospitais infantis Joana de Gusmão, em Florianópolis, e Santa Catarina, em Criciúma, além do incremento de repasses para os municípios reforçarem a atenção básica, que não tem suprido a crescente demanda por atendimentos. Também foram tomadas medidas administrativas internas para otimizar a prestação de serviços.

Por fim, a SES ressalta que mantém um canal de diálogo aberto com os órgãos de controle e com todos os entes federativos e reforça o pedido para que a população complete o seu ciclo vacinal, em especial para as populações mais vulneráveis, como crianças e idosos.

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