Aziz Filho, jornalista

Marielle Franco morreu muitas vezes depois da noite infame em que foi assassinada. Todo santo dia há agressões à sua memória e à sua família, uma reação à força avassaladora deste símbolo contra o preconceito. Marielle seguirá morrendo até que o Brasil atravesse a atual onda de intolerância e volte a ser um país que chora seus mortos e condena os assassinos.

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Quem carrega ódio no coração enxerga pouco. Por isso a verdadeira Marielle, para muitos, foi ficando invisível. Era uma negra de origem pobre e sorriso bonito. Nasceu na favela, teve criação católica, foi camelô aos 11 anos para pagar os estudos. Aos 18, trocou a banca de camelô pelo ofício de educadora de creche. Um ano depois, deu à luz a única filha, que ganhou um nome criativo, como tantos outros bebês de famílias simples: Luyara.

Marielle fez-se socióloga e deu asas à inquietude, como milhões de jovens contestadores. Feminista, assumiu ser bissexual e apaixonou-se pela defesa dos direitos humanos. Concluiu mestrado em Administração Pública, trabalhou como assessora de um político e, em 2016, elegeu-se vereadora, com 46 mil votos. Era uma vereadora ativa, simples e de sorriso bonito, como muitas outras.

O atentado, que também tirou a vida do motorista Anderson Gomes, foi às 21h30min de 14 de março. Três tiros na cabeça e um no pescoço mudaram o significado do nome Marielle. Era para ser mais uma negra vítima de violência, mas virou imortal. Seu corpo metralhado, que deixou em luto o mundo civilizado, passou a ser profanado, como o de uma bruxa na Idade Média.

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Não importa se Marielle tinha paixões, filha para criar, vontade de ser avó. Não faz diferença se nem completou 39 anos, se tinha o coração grande e generoso para apoiar vítimas de violência policial e parentes de policiais mortos na guerra do Rio.

Para os que defendem, mesmo que veladamente, o assassinato de Marielle, o importante é negar-lhe o direito a um descanso em paz. O país que perdeu a vergonha de odiar o diferente precisa matá-la todo dia. O problema desses cúmplices é que, muito além da saudade dos amigos, do amor da família, da gratidão dos parentes de mortos pela violência, Marielle vive. Viverá sempre, enquanto houver alguém sonhando com a paz.