Um dos projetos de destaque no ano da retomada da cinefilia na Capital, a Sessão Plataforma termina 2013 com duas sessões imperdíveis. Nesta terça-feira, às 20h30min, a Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro recebe um dos melhores longas brasileiros recentes: Avanti Popolo, de Michael Wahrmann. Quinta-feira, no mesmo horário, tem Ato de Matar, documentário de Joshua Oppenheimer que, para muitos críticos (como os da revista Sight and Sound), é o melhor filme da temporada.

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Com produção de Werner Herzog, Ato de Matar (Dinamarca, 166min) ouve – e questiona – integrantes do grupo paramilitar responsável pelo massacre de milhares de militantes comunistas na Indonésia dos anos 1960. Avanti Popolo (Brasil, 72min) é um drama que beira o ensaístico e também tem caráter político: na trama, um homem (André Gatti) volta à casa de seu pai (Carlos Reichenbach), que vive isolado desde que seu outro filho desapareceu na mão de agentes da ditadura militar, 30 anos antes.

Wahrmann, realizador superpremiado com o curta Avós (2009) que está estreando no longa, comparecerá à sessão. O uruguaio que viveu muitos anos em Israel antes de se radicar em São Paulo falará sobre suas escolhas, como a de quase não trabalhar com atores, e sim amigos diretores ou pesquisadores com os quais compartilha o processo de criação – Reichenbach, cineasta e mestre de novas gerações de cinéfilos, que morreu em 2012, tem aqui uma de suas raras incursões como intérprete.

Avanti Popolo é um filme de afetos. A tentativa de comunicação entre o filho e seu pai se dá a partir da descoberta, por parte do garoto, de rolos de filmes familiares nos quais se vê a figura do irmão desaparecido. Planos em sua maioria estáticos, de grande beleza plástica, apresentam um espaço em ruínas, para usar uma expressão do próprio Wahrmann (leia entrevista abaixo), no qual o presente não passa de uma sombra do passado. Pelo tipo de abordagem, a ideia de construção da memória lembra o trabalho de Jia Zhang-ke em Em Busca da Vida (2006) – filme que, não por acaso, tem como título original a expressão “natureza-morta” (Still Life, em inglês).

Há humor em Avanti Popolo, apesar (e além) de tudo. Ele salta aos olhos quando o personagem de Gatti pega um táxi com um motorista (o crítico Eduardo Valente) “especialista” em hinos nacionais (para agradar aos passageiros gringos), mas perpassa toda a narrativa. Trata-se de um filme leve e contundente, divertido e formalmente rebuscado – daqueles que proporcionam uma sessão descontraída mas que, depois, não saem facilmente da cabeça do espectador.

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Cinema de ruínas

Michael Wahrmann, o diretor de Avanti Popolo, conversou com ZH por e-mail. Confira:

Zero Hora – Ainda que incipiente (tem os curtas Avós e Oma antes de Avanti Popolo), sua obra tem um caráter ao mesmo tempo político e familiar, na qual desponta uma ideia de construção e preservação da memória – pelo viés pessoal, afetivo. Por que este tipo de abordagem te motiva?

Michael Wahrmann – Meus curtas retratam relações entre gerações de descendentes do Holocausto a partir do abismo de comunicação entre elas. Em Avanti Popolo, a pesquisa continua, agora deslocada para as ditaduras militares latino-americanas. Mas o princípio – do trauma, da ausência – é o mesmo. E os três filmes, de forma similar, tratam da construção da memória, de como esses grandes eventos históricos se relacionam com o presente e se manifestam em pequenos acontecimentos íntimos, cotidianos. O longa nasce mais do medo do esquecimento do que da vontade de evocação do passado. É um filme sobre o presente. E, assim sendo, nossos heróis não são mais heróis, mas pessoas comuns, com histórias quase banais. A ditadura e sua história a gente já conhece. O que me interessa é o que restou dela. Quando desligam as câmeras, e ninguém mais quer saber da sua história, o que você faz? Onde você vai? Quem te ouve? Ninguém. Você fica sozinho, com sua história de vida, com seu filho desaparecido, com as saudades, com a dor. E isso só se pode contar a partir da intimidade, da solidão. Por outro lado, as questões políticas sempre foram parte do meu fazer, já que minha entrada no cinema não vem necessariamente da cinefilia ou de uma grande paixão pela linguagem, e sim por acaso: eu queria me expressar, podia ser pelo cinema ou por qualquer outro meio de expressão. Quando jovem, em Israel, minha intenção era ser político. Eu militava nos movimentos de esquerda. As histórias das ditaduras latino-americanas me eram passadas pelos meus pais, assim como a memória dos meus avós e da II Guerra Mundial. Mesmo que esses temas apenas façam parte do meu imaginário, eles sempre foram muito presentes na minha vida. Para mim, que não sou uma pessoa muito criativa, é difícil fazer filmes sobre coisas que não são minhas.

ZH – Avanti Popolo é um filme sobre a construção da memória, mas a partir do cinema, com citações cinéfilas (o próprio título, a cachorra que se chama Baleia, como no clássico Vidas Secas), atores que na verdade são cineastas ou pesquisadores do cinema. Você já disse que os personagens são baseados nos seus intérpretes. Outra informação interessante: o projeto começou como um e virou um longa depois de ter sido filmado em apenas seis dias. É verdade? Fala um pouco do processo de formatação do projeto, por favor.

Wahrmann – O filme nasceu de uma premissa simples: um pai espera o filho desaparecido, sua espera, o absurdo dela – o que determinou um primeiro diálogo com Esperando Godot, de Becket. Daí, por livre associação, pensei em usar o (André) Gatti como protagonista. Ele era meu professor de cinema e começou a trabalhar junto comigo no roteiro e no desenvolvimento de algumas ideias. Obviamente, não podia chamar um ator profissional para o papel do pai, pois iria destoar muito do André. Na mesma época, falando com o Carlão (Reichenbach), percebi a semelhança física dele com o André. Ele aceitou, depois de alguma insistência da minha parte, e de me passar uma lista de atores melhores do que ele, lista que recusei muito educadamente. De alguma forma, como não gosto de trabalhar com atores, fui criando cenas e pensando em qual dos meus amigos e conhecidos poderia fazer o papel imaginado. A cena do taxista, por exemplo, foi escrita a partir de uma viagem real minha de táxi, e, para interpretá-la, fiquei pensando em algum amigo obsessivo, neurótico – para não dizer chato. Foi como surgiu o nome do Eduardo Valente… A essa altura, já tínhamos alguns tratamentos do roteiro e tínhamos ganhado o Prêmio Estímulo de Curta-Metragem em São Paulo, mas o roteiro se modificava o tempo todo, personagens iam sendo desenvolvidos, a estrutura narrativa ia ganhando camadas etc. Entramos no set, com a perspectiva de rodar em seis ou sete dias. Alterei o plano, que era muito rígido, prevendo a filmagem de cenas do curta e alguns extras que, se dessem certo, poderiam levar a um longa. De fato, entregamos o curta em dois meses e, depois, ficamos montando um longa durante um ano, que só foi resolvido, dado como pronto, quando o curador do Festival de Roma viu o corte e pediu o filme para o seu festival (Avanti Popolo ganharia o prêmio principal do evento).

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ZH – Buscando descrever os planos estáticos de dentro da casa em Avanti Popolo, alguém já usou a expressão “natureza-morta” – que, aliás, é o título de um dos filmes do Jia Zhang-ke (Still Life em inglês, Em Busca da Vida no Brasil), um cineasta que trabalha o tema da construção da memória e, consequentemente, da identidade. Pelo conceito, natureza-morta fala de algo estático, mas, paradoxalmente, em ambos os casos há algo de inconformidade na abordagem do tema, você concorda?

Wahrmann – Não vi Still Life. Mas o conceito de natureza-morta estava no nosso filme quase desde o começo dos estudos de referencias de arte. Como a gente trabalhou com basicamente um plano só, por assim dizer (um plano amplo de dentro da casa do pai), discutimos e elaboramos muito o que ele seria. Nossas referências partiram de alguns quadros renascentistas e acabaram nas polaroides de Tarkovski. A natureza-morta é um fio dramático ao longo da história da arte, e nos apegamos muito ao conceito. Não é à toa que a pintura principal da parede, dentro do quadro fílmico, apresenta uma floresta e uma lagoa, e que no meio da mesinha da sala há uma cesta de frutas muito bem composta que permanece como um elemento vivo nessa sala morta até ser “comida” pelo protagonista ao fim do filme – na mesma sequência que ele tira o quadro da floresta da parede a fim de projetar nesse espaço seus velhos filmes. A natureza-morta que substitui outra natureza-morta. Já que a memoria, também, é ruína. Como o filme trata da espera, acreditava que a forma deveria dar conta disso. Se eles esperam, nós esperamos. É o correto. É respeitoso com esses personagens e suas histórias. Seria ruim ter de acelerar, agilizar as coisas pelo meu bem fílmico. A espera gera a estagnação. O não poder enterrar o morto não permite o luto. Sem o luto, não tem superação. E aí cria se de novo uma relação e um questionamento do papel do cinema – ou da arte – nesse âmbito. E, óbvio, de como lidamos com nosso passado. A lembrança apenas não basta. Sem confronto, como se alcança a superação? Sem questionamento, sem abrir as feridas para poder limpá-las, como continuamos? A estagnação, nesse sentido, mais do que conformidade, para mim, nasce de uma derrota, de uma desistência, tão teimosa e tão certeira no seu pessimismo, que nem a memória é capaz de curar. E aí, o que é capaz? Qual seria a inconformidade? Como faz o filho que volta à casa, que precisa lutar não só contra sua própria derrota, mas contra a derrota do pai também? O pai que cansou, o filho que cansou. Os dois que desistem. E, no final, chego eu, diretor do filme, e desisto também. A deriva é uma manifestação da inconformidade? Ou da conformidade? Não sei.

ZH – Avanti Popolo construiu uma carreira muito interessante em festivais e vem sendo muito badalado, mas em nichos restritos. Entretanto, por questões de mercado e pelo seu próprio hermetismo, está mais para o que o pesquisador Jean-Claude Bernardet chama de “cinema irrelevante”. Há, de fato, uma distância enorme entre o grande público e o cinema de autor. Como você vislumbra a carreira do filme agora, depois dos festivais e a partir de seu encontro com plateias fora do nicho cinéfilo?

Wahrmann – Bernardet está certo. Nós fazemos cinema irrelevante. Avanti Popolo ganhou prêmios no Brasil e no Exterior, análises e estudos diversos, foi notado pelo nicho. Ótimo. Mas ninguém vai ver este filme. Não é à toa que, ao final, nosso personagem declara que não vê mais nada. Não é à toa que o epílogo apresente a mim, o diretor, cantando um hino socialista, solitário, sem coro, sem ânimo, enquanto vemos um cinema em ruínas. Tudo o que aparece no filme são ruínas. Fiz um filme que ninguém vai ver, sei disso. E acho isso triste. Da mesma forma, ninguém leu o texto do Bernardet. E ninguém lerá esta entrevista. As pessoas não querem ler Bernardet, nem uma entrevista com um cineasta desconhecido. As pessoas querem ler a coluna da Mônica Bergamo. Então eu não posso vislumbrar a carreira do filme pensando no grande público. Nossa batalha não pode ser essa. Existe o entretenimento e a indústria, mas cada um com seu papel. O cinema de arte precisa da indústria, pois, sem ela, não temos trabalho, nem dinheiro. Mas a indústria também precisa de pessoas irrelevantes que nem a gente, que experimentem a linguagem, proponham novos caminhos, toquem em novos assuntos, duvidem, questionem, busquem a renovação. Sem isso, o cinema morre de tédio. O que me leva a concluir que “relevância” é um termo muito relativo. E que me leva a lembrar do manifesto Anti 100 Anos de Cinema, do cineasta Jonas Mekas:

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“Nos tempos em que todo mundo quer ter sucesso e vender, eu quero celebrar aqueles que abraçam o fracasso, social e diariamente, para buscar o invisível, o pessoal, coisas que não trazem dinheiro ou pão e não fazem história contemporânea. Eu sou pela arte que fazemos uns para os outros, como amigos, para nós mesmos. Eu estou de pé no meio da Rodovia da Informação e rindo. Porque uma borboleta em uma pequena flor em algum lugar, acabou de bater suas asas e eu sei que todo o curso da história vai mudar drasticamente por causa desse bater de asas. E o mundo nunca mais será o mesmo. A verdadeira história do cinema é a história invisível, a história de amigos se reunindo e fazendo o que amam. Para nós, o cinema está começando a cada novo rumor do projetor, a cada novo rumor de nossas câmeras nossos corações saltam à frente, meus amigos!”.