Não foi apenas como potência econômica em ascensão que a China mexeu com o orgulho e as certezas dos americanos. Uma professora universitária de origem chinesa acaba de lançar um livro que tem provocado muita discussão na imprensa e nos lares dos Estados Unidos: será que os ocidentais, com seu excesso de cuidados e falta de limites, estariam criando filhos despreparados para a competição em um mundo globalizado? Ou, ao contrário, há que se ter compaixão das crianças que crescem sob o jugo de pais orientais linha-dura?

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No volume de memórias intitulado Battle Hymn of the Tiger Mother (Hino de Batalha da Mãe Tigre, em tradução livre), Amy Chua, 48 anos, narra sem reservas as regras rígidas e extremas “à moda chinesa” com que criou as filhas, Sophia, 18 anos, e Louisa, 15: disciplina espartana nos estudos e na prática do piano e do violino (sem exceção para férias ou finais de semana), notas 10 como as únicas aceitáveis e nada de visitas de amigas para brincar.

Um episódio que a professora de Direito na Universidade de Yale conta no livro é bastante ilustrativo: por volta dos sete anos, mesmo depois de treinar sem parar com a mãe por uma semana, Lulu não conseguia tocar uma peça com certo grau de complexidade ao piano. Então, um dia, anunciou que havia desistido. Amy obrigou-a a voltar ao piano, a custo de chutes da menina, ameaçou a filha de deixá-la sem almoço, sem festas de aniversário e, até mesmo, de doar suas bonecas favoritas para o Exército da Salvação. Acusou Lulu de preguiçosa e autoindulgente e ainda desdenhou dos protestos do marido em favor da menina: “Você apenas não acredita nela”. Ao fim, Lulu conseguiu tocar a obra, ficou muito orgulhosa e dormiu abraçada à mãe. Algumas semanas depois, tocou a mesma obra em um recital. Na conclusão de Amy, o que aos olhos de muitos pareceu tortura foi, para ela, uma forma de ensinar que persistência e esforço dão resultados e de demonstrar o quanto acreditava no potencial da caçula, uma vez que defende que o pior para a autoestima de um filho é deixá-lo desistir.

Os métodos da Mãe-Tigre provocaram reações inflamadas. Depois de publicar um trecho do livro no Wall Street Journal, em um bem-sucedido lance de marketing, Amy recebeu e-mails horrorizados e outros de admiradores, dizendo que gostariam de ter tido pais assim. Ao defender rigor e exigência em potência máxima na educação dos filhos, a autora se coloca no extremo oposto em relação à grande parte dos pais ocidentais contemporâneos, que enfrenta a dificuldade de dizer não aos filhos e o medo de que qualquer gesto mais duro seu possa traumatizá-los. Mais: diante de pais desorientados, que buscam apoio em manuais de autoajuda, Amy se mostra convicta de estar fazendo o melhor.

O que não significa que a Mãe-Tigre não reveja posições. Por exemplo, ela hoje arrepende-se de ter chamado Sophia de “lixo” ao repreender a filha por uma atitude desrespeitosa – Amy também havia sido chamada assim por seu pai quando desrespeitou sua mãe. Essa atitude se converteu em uma das mais comentadas e repudiadas do livro, mas, como a autora ponderou em entrevista à imprensa americana, o horror não é exclusividade dos americanos: “Sei que muitos pais asiáticos estão secretamente chocados com muitos aspectos da educação ocidental”. E os exemplos são justamente o número de horas que os filhos podem desperdiçar no Facebook e nos jogos de computador. Assim, o hino de guerra da Mãe-Tigre é também um manifesto de uma cultura distinta.

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Como destaca o psiquiatra e psicoterapeuta de ascendência japonesa Içami Tiba, autor de títulos como Quem Ama Educa, Disciplina: Limite na Medida Certa e Família de Alta Performance: Conceitos Contemporâneos na Educação, Amy, embora americana, fala como mãe chinesa. E a China, prossegue Tiba, é um país com um Estado forte e com uma exploração abusiva da mão de obra, onde os filhos são os últimos a falar, pois respeitam os pais, que, por sua vez, respeitam o que o governo determina.

– Eu talvez seja um dos mais exigentes em educação no Brasil, falo do amor exigente, de disciplina, de meritocracia, mas acho que a autora está em um extremo muito acima do que seria viável no Brasil, em que mães não conseguem dar limites às crianças. Aqui, a educação está muito frouxa, e ela aponta o outro extremo, que os filhos daqui não comportariam. Mas eu acredito que se pode ser exigente sem ser extremado.

Embora destaque que a discussão que sucedeu a publicação do livro de Amy seja bem-vinda, Tiba descreve as exigências dela para com suas filhas como “medidas drásticas”, algo “perto do fanatismo”.

– O que educa não é a brabeza, a cobrança, a ofensa. Ninguém gosta de chefe que dá ordens, mas de quem estimula a fazer, que seja um líder – explica Tiba. E então, lembrando o episódio do piano, descrito na página ao lado, questiona: – Por sorte, a menina acertou a música. E se não tivesse acertado?

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Ao analisar os métodos da Mãe-Tigre, o psiquiatra faz ainda uma outra ressalva: os pais não podem se julgar no direito de defirnir o caminho dos filhos:

– Já imaginou se o pai do Mozart dissesse: “Para com esse negócio de música e vá estudar filosofia”?

A psicanalista Diana Corso também pontua as diferenças culturais que separam as máximas de Amy Chua daquilo que praticam os pais ocidentais. Mas vai ao cerne do que permeia a relação pai e filho e explica que um filho se constitui espelhado no sonho dos pais, não necessariamente os sonhos que os pais sabem que têm, mas até os que eles ignoram ter: se o desejo é que se retire da vida o máximo de gozo, os filhos serão hedonistas, se for que tenham liberdade de escolha, crescerão com esse ideal, e se for que façam o necessário para serem vencedores, é o que vão beber dos pais.

– Não tem como julgar a postura dessa mãe, até porque é pautada por um parâmetro cultural, a educação oriental, e por um desejo de oferecer o máximo de exigências para garantir às filhas o lugar de vencedoras – avalia Diana. – Para mim, por exemplo, a liberdade de escolha e o espaço para que minhas filhas se desenvolvessem criativas foram o mais importante. Outros podem julgar que fui omissa, que não impus limites, mas fiz o que pude de acordo com o meu desejo. Como essa mãe fez.

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De sua parte, ao menos às vistas do público, as filhas de Amy vão bem, obrigada. Posam sorridentes ao lado da mãe para as fotos das numerosas reportagens na imprensa (inclusive para a matéria de capa da revista Time de 31 de janeiro). Diante das tantas críticas dirigidas a Amy, Sophia saiu em defesa da mãe em uma carta em que até minimiza outro episódio muito comentado do livro, quando a Mãe-Tigre rejeita cartões de aniversário que as meninas haviam feito para ela, dizendo que merecia algo melhor realizado. “Engraçado como algumas pessoas estão convencidas de que isso nos marcou por toda a vida. (…) Mas vamos encarar a realidade: o cartão era fraco, e você havia me pegado. Fiz em 30 segundos sem sequer apontar o lápis. Por isso, quando você rejeitou o cartão, não senti que você estava me rejeitando. Se eu realmente tivesse dado o melhor de mim em alguma coisa, você nunca jogaria de volta na minha cara”, escreveu Sophia, encerrando enfaticamente com “Se eu morresse amanhã, morreria com o sentimento que vivi toda a minha vida em 110%. E, por isso, Mãe-Tigre, eu agradeço”.

No embate entre os extremos da Mãe-Tigre e os ideais menos rígidos dos pais ocidentais, talvez caiba ao futuro mostrar quem ganha ou perde. Ou, nas palavras de Içami Tiba:

– O que vai dizer se essa educação deu resultados é como serão no futuro as pessoas que foram exigidas dessa maneira, se serão realizadas, como vão educar seus filhos e se vão repetir esse mesmo modelo.

Mamãe não deixa

O que Amy Chua jamais deixou suas filhas fazerem:

– Receber amigos para brincar

– Participar de uma peça de escola

– Reclamar por não participar de uma peça de escola

– Não ser a primeira da classe, exceto em teatro e educação física

– Tocar qualquer outro instrumento que não fosse piano ou violino

– Deixar de tocar piano ou violino (de duas a três horas por dia além de sessões duplas no final de semana)

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Pérolas de Amy

Três frases que Sophia diz ter escutado da mãe enquanto praticava piano:

1- “Oh, meu Deus, você está ficando pior e pior.”

2- “Vou contar até três. Então, quero musicalidade.”

3- “Se da próxima ver não soar perfeito, vou pegar todos seus animais de pelúcia e queimá-los!”

– O livro “Battle Hymn of the Tiger Mother”, de Amy Chua, deverá ser lançado no Brasil no segundo semestre.