À época do lançamento no Brasil, a escritora Cintia Moscovich comentou detalhes da obra Viver Para Contar, biografia de Gabriel García Márquez, falecido nesta quinta-feira. Leia a resenha publicada em Zero Hora em setembro de 2003, quando o livro ganhou edição brasileira.
Continua depois da publicidade
Leia mais:
Morre o escritor Gabriel García Márquez
As mensagens de despedida a Gabriel García Márquez
Adaptações da obra de García Márquez para o cinema não ficaram à altura dos clássicos
Continua depois da publicidade
Qual o seu livro favorito de García Márquez?
Conheça algumas das principais obras de Gabriel García Marquez
A FICÇÃO IMITA A VIDA
Por Cintia Moscovich
Como se conta a história de um homem? Melhor dito: como se conta a história de um homem que é dos poucos autores a que se pode qualificar de magistral? Viver para Contar, livro de memórias de Gabriel García Márquez, responde em definitivo à pergunta. E, de quebra, impõe uma certeza: somente os grandes conseguem esquivar-se da frugalidade cotidiana, elevando o vivido ao sublime da ficção.
Lançado em espanhol em 2002 pela gigante Random House Mondadori, a venda do primeiro volume das memórias do escritor colombiano ultrapassou 1,5 milhão de exemplares em todo o mundo em um ano. Para os padrões brasileiros, Viver para Contar (Record, 474 páginas, R$ 55) tem tiragem inicial impressionante:50 mil volumes.

Com tradução de Eric Nepomuceno, que honra o torneio elegante das construções e o olhar espantado e irônico do original, Viver para Contar revela a essência da personalidade e da literatura de Gabo – apelido pelo qual é carinhosamente conhecido.
Um dos papas do realismo fantástico, prêmio Nobel de Literatura de 1982, autor de livros fundadores da literatura latino-americana, vivendo há 40 anos na Cidade do México, Márquez inicia a obra às vésperas do Carnaval de 1950, em Barranquilla. Então um jornalista de 22 anos, aspirante a escritor, que, contrariando o desejo paterno, largou os estudos para viver nas franjas da miséria, Gabo recebe a visita da mãe, que o convoca a acompanhá-la na venda da casa da família – “a casa” – em Aracataca.
Continua depois da publicidade
A viagem à cidade onde nasceu e onde foi criado até os oito anos é narrada como verdadeira epopeia tropical. Não bastasse ser lição impressionante de prosa, ainda é revelada a origem do nome Macondo, cidade-fetiche do autor, que vem a ser uma das estações do trem em que seguiam, correspondente à última fazenda bananeira da região – Gabo foi seduzido pela “ressonância poética” do nome.
Também se fica a par de que, a partir de então, sua forma de encarar a literatura foi alterada em essência – passa a esquivar-se do que considera “pura invenção retórica” e, mais do que buscar material exterior, descobre que sua própria vida pode render material para a literatura. A matriz da ficção marqueziana mora na “casa de lunáticos”, povoada por 11 irmãos, avós estranhíssimos, mulheres carolas, quartos assombrados e tios contadores de casos de guerras – a mesma casa e os mesmos moradores que surgem em Cem Anos de Solidão, de 1967.
Muitas outras cenas de seus livros têm sua contrapartida real revelada: em O Amor nos Tempos do Cólera, de 1985, por exemplo, Gabo conta a história do amor proibido de seus pais – ela, uma moça de boa família, ele um telegrafista remediado. O olhar oblíquo do escritor também transformou a assustadiça irmã Margot em Rebeca, fantástica personagem de Cem Anos de Solidão. Além de seu aprendizado literário e afetivo – o livro pode ser tomado como um romance de formação -, Gabo também esclarece detalhes relativos à sua opção política, sempre à esquerda (a amizade do autor com Fidel Castro vem de longa data). A obra ganha tons impressionantes ao narrar o “bogotazo” de 1948, quando a cidade de Bogotá foi sacudida por choques entre manifestantes e o exército, resultando em 2,5 mil mortes.
O livro termina quando o autor parte para a Europa em 1955, ano em que lançou seu romance de estreia, O Enterro do Diabo. Agora, mercado e leitores esperam os outros volumes, que não devem tardar. Por enquanto, Gabo se recupera de um câncer linfático e da morte do irmão Eligio, fatos que o colocaram em colapso entre 1999 e 2001. À época, apegou-se às suas memórias como força de vida. Felizmente, viveu para contar. Melhor dito: viveu para tornar-se, ele mesmo, seu melhor personagem.
Continua depois da publicidade
Confira fotos da trajetória do escritor: